quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Há anos que um amigo me avisa: vivemos (a caminho do pretérito imperfeito...) em paz há demasiado tempo. Aqui, no admirável mundo ocidental, convencidos da nossa superioridade moral, social, cultural e tal, tão embevecidos com a rotina e a ordem democrática que amolecemos no embuste embalado da normalidade, da igualdade, da unidade, e por aí adiante, mas pouco, para não sair da linha. Estamos nessa zona de interesse. O abismo é mesmo ali ao lado, mas escolhemos não ver. Ou escolhíamos, não sei. Portugal parece tão distante dos Infernos mais próximos que podemos manter os olhos fechados por mais algum tempo, brincar aos orçamentos, anani-ananão, cedes-tu-eu-não, ignorar a falência do Estado, porque, afinal, apesar de tudo e do resto do mundo, vivemos num cantinho do céu, diz a dona Berta da confeitaria.

Cumpriu-se um ano sobre o ataque infame do Hamas. O horror do 7 de Outubro tornou-se no elixir da impunidade de Benjamin Netanyahu e do seu implacável exército. Dizem que não sabe nada de História quem se atreve a questionar o modo e o método da “legítima defesa” de Israel. Ignorantes ou anti-semitas. Não há espaço para olhar aquela orgia de morte e destruição e questionar. Se os palestinanos abandonassem as armas haveria paz, se Israel abandonasse as armas, não haveria Israel, como é que insistimos em complicar? 

O Hamas e o Hezbollah são organizações terroristas, políticas ou não, assumidamente empenhadas em destruir Israel e a causa palestiniana deve ser a última das suas preocupações (tal como os reféns israelitas para Netanyahu), mas dificilmente terão capacidade para tal, mesmo com o apoio do Irão. Israel é uma potência militar significativa, com um exército moderno, eficaz, um sistema de defesa avançado e possui considerável apoio internacional. Não é um Estado em risco de desaparecer. Não pela via militar. 

Mesmo que não se lamente (e eu não lamento) a morte dos responsáveis pela barbárie de há um ano, ou a extinção de regimes como o do Irão, onde mulheres sob custódia policial podem ser assassinadas por não cobrirem devidamente o cabelo, a solução não pode passar pelo extermínio de populações inteiras e pela destruição completa da terra, que ambos, judeus e palestinianos reclamam como sua com base em razões e argumentos históricos e religiosos que assistem às duas partes. É uma carnificina sem fim, alimentada pela vingança, mais do que pelo direito à defesa, e por uma embriaguez de guerra capaz de amputar qualquer resto de humanidade. Se há exército e inteligência capazes de ataques cirúrgicos aos seus inimigos é Israel, pelo que, quanto de História é preciso saber ou lembrar para rejeitar a perseguição predatória de um povo?

Vale-me o Outono. A transmutação lenta das cores na sua vaidade decadente; a luz dourada emoldurando aquele grupo de gaivotas que repousam no telhado em frente. E os meus livros. Não há vida sem livros. Talvez o céu se pareça com isto, dona Berta.