Nesta margem, a avenida é limpa e o bairro é chique. Há um leve cheiro a jasmim, e edifícios elegantes e esterilizados do outro lado da rua. Observo-os, perdida por detrás da lente da minha máquina fotográfica. Os outros seguem mais à frente. Os miúdos riem e falam de coisas que, à distância, apenas adivinho. É espantoso, o tanto que têm para conversar, juntos as quase 24 horas dos dias de férias.
As
árvores balançam com graça os seus ramos esguios, derramando, sobre o chão
escaldante, sombras negras, irrequietas, que logo escoam céleres pelos
sumidouros rendilhados que o sol torna mais brilhantes.
Vou distraída. Demoro um pouco a perceber que o homem se dirige a mim, em passo
largo. Um passo largo. Nem vi de onde veio, materializou-se diante de
mim, moreno de cabelo curto e negro, fardado; parece-se com um segurança. Levanta
a mão sem me tocar, não lhe entendo uma única palavra, mas sei que me manda
parar. Percebo, intuitivamente, que fiz algo que não devia. Uma fotografia. Aponta
para a minha máquina e mantém-me refém de uma suposta autoridade que me
confunde. Continua no meu caminho, impassível, e sinto o calor apertar-me mais.
Os outros, lá adiante, parecem distraídos. Não tarda, escapam-se à esquina da
rua e deixarei de os ver. Amaldiçoo-me por me ter deixado ficar tão para trás,
eu e os meus malditos instantes. Irrepetíveis, urgentes. Inadiáveis.
Continuo
a encarar o homem na minha frente. Estou agora certa de que se trata de um
problema com alguma ou algumas das minhas fotografias. Mostro o écran da
máquina e pergunto se devo apagar alguma coisa – não desconfio o quê –,
imaginando que me faço entender de algum modo. Segura na mão um walkie-talkie
obsoleto que aproxima do rosto enquanto olha para mim. Fala com alguém, e é
evidente que aguarda instruções. A esquina está cada vez mais próxima, mas não
quero chamar. Receio elevar demasiado a voz, denunciar-me na aflição
tonta que me agonia. O riso das crianças chega-me já encolhido, pálido, e o
calor também me ameaça.
Perco-me
por momentos, entre as sombras e os cantos do tempo, até o homem começar a
chamar-me, uma cacofonia insistente e confusa. Acaba por tocar-me no braço, à
altura do cotovelo, leve, mais suavemente do que sugere o enorme chinfrim em
que pretende que eu o entenda. Mas compreendo que posso ir, afinal, com a minha
máquina e as minhas fotografias intactas. Num devaneio inútil, desejo,
intimamente, poder entender e fazer-me entender todas as línguas do mundo.
Acabam
de chegar à esquina quando se voltam, finalmente, para trás. Mas já está tudo
bem. Volto a escutar as gargalhadas cristalinas, inocentes e alegres como
antes.