quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Insubmissa


A mulher, deitada no relicário de vidro, exala os últimos suspiros. Não lhe vejo a cara, porque jaz envolta numa mortalha de linho branco, como uma múmia. A igreja é escura, de contornos disformes, e o tecto tão alto que chega ao céu. Na verdade, parece não ter tecto: vejo o manto negro da noite estrelada e a unha curvada e fina da Lua em quarto crescente.

Leio-lhe versos de Anunciações, à mulher que ninguém vela,

“Ele vai enumerando

as tentações

em que ambos sempre caem

entre o mal e o pecado

a nudez e o desejo

o beijo e o abraço

o prazer em que

se cumprem

e o gosto do recomeço

os corpos onde entretecem

a paixão e o segredo

entre a luz e o orgasmo

chegando à raiz do medo”

 

eu, que nunca sonho, sonhei com a palavra de Maria Teresa Horta. E, quando raramente sonho, não é bem um sonho: são fragmentos, absurdos e dispersos, como estes.

Foi-se o corpo, apenas. Não há nada que possa verdadeiramente morrer em Maria Teresa Horta.