Ainda
a propósito da fotografia de Sebastião Salgado.
Uma
das minhas preferidas é a daquela impressionante mancha de búfalos em
movimento, captada com precisão lapidar; ou a do homem de turbante e túnica, berbere,
talvez, sentado só, na areia das dunas de Ma’or Tadrart, comungando da vastidão
do deserto; os baobás de Madagáscar que parecem flutuar sobre a paisagem nevoenta,
ou os meninos Dinka, pastores, em sombras de cinza-claro, guardando o gado zebu.
A pata da iguana, o antebraço escamoso como “um guerreiro da Idade Média com a sua cota de malha de ferro”. São mais do que fotografias, e
nessa transcendência perene parecem quadros pintados à mão. Tal como o corpo de
Cristo no túmulo de Hans Holbein parece menos uma tela e mais uma escultura,
com as suas pinceladas refractadas e pontiagudas. Há talentos assim,
sobrenaturais, como nos contos de fadas: de mim, recebe o dom de esculpir o
assombro. Gravar na carne do tempo a sua própria memória.
De
resto, também gosto de Arvo Pärt, da chuva vertical e lisa como contas de
rosário, que molha apenas quem se permite. Aqui, a guerra ainda é uma sombra
parda, possível de dissipar com um movimento amplo de pensamento. Não se ouve o
zunir das bombas, não se vive no limiar do horror. Há um espaço entre notas
onde a beleza ainda perdura. Por um momento, nada no meu mundo parece seriamente ameaçado.