sexta-feira, 20 de junho de 2025

 

Ainda a propósito da fotografia de Sebastião Salgado.

Uma das minhas preferidas é a daquela impressionante mancha de búfalos em movimento, captada com precisão lapidar; ou a do homem de turbante e túnica, berbere, talvez, sentado só, na areia das dunas de Ma’or Tadrart, comungando da vastidão do deserto; os baobás de Madagáscar que parecem flutuar sobre a paisagem nevoenta, ou os meninos Dinka, pastores, em sombras de cinza-claro, guardando o gado zebu. A pata da iguana, o antebraço escamoso como um guerreiro da Idade Média com a sua cota de malha de ferro. São mais do que fotografias, e nessa transcendência perene parecem quadros pintados à mão. Tal como o corpo de Cristo no túmulo de Hans Holbein parece menos uma tela e mais uma escultura, com as suas pinceladas refractadas e pontiagudas. Há talentos assim, sobrenaturais, como nos contos de fadas: de mim, recebe o dom de esculpir o assombro. Gravar na carne do tempo a sua própria memória.

De resto, também gosto de Arvo Pärt, da chuva vertical e lisa como contas de rosário, que molha apenas quem se permite. Aqui, a guerra ainda é uma sombra parda, possível de dissipar com um movimento amplo de pensamento. Não se ouve o zunir das bombas, não se vive no limiar do horror. Há um espaço entre notas onde a beleza ainda perdura. Por um momento, nada no meu mundo parece seriamente ameaçado.