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A mim também me parece um enorme favo de mel, mais do que uma calçada de gigantes.
A Natureza é artesã exímia – precisa, paciente, geométrica. Implacável. Não há lenda que lhe iguale o génio. Inventamos histórias para suportar a simplicidade da perfeição.
Seja tradição, misoginia, influência dos vikings, do alemão ou do
latim, a verdade é que me seduz que, de um navio, em inglês, se diga she. And she will, garantia o Mr. Andrews
de James Cameron sobre o iminente naufrágio do Titanic. Por
coincidência, (re)vi o filme a poucos dias de viajar para a Irlanda; intencionalmente,
voltei a vê-lo no regresso. Gosto de histórias bem contadas, e o Titanic
de Cameron é, essencialmente, uma história bem contada. Triste no que tem de
real e trágico, medonhamente romântica, e muitíssimo bem contada. O museu que
Belfast dedica ao magnífico e efémero navio é interessante, não sei se absolutamente
imperdível, mas impressiona ler e ouvir testemunhos de sobreviventes e,
sobretudo, perceber como pequenos erros e pequenas contrariedades concorreram
para o desastre. Estava longe de imaginar que, daí a poucos dias, choraríamos os
mortos do icónico e nosso elevador da Glória, mas lembro-me de pensar em desgraça no
regresso, durante a aterragem desajeitada no aeroporto de Lisboa, a cidade tão
perto que parece possível tocar.
A
estátua de James Joyce é em Dublin, não em Belfast, Irlandas diferentes, eu sei, mas vou deixar aqui. Também
por coincidência, a primeira “notícia” que me apareceu nada mais desligar o
modo de avião foi a crónica de Miguel Esteves Cardoso sobre como ler Ulisses:
ando a fazê-lo há um ano, há momentos em que me aborreço de morte e outros em
que pasmo de admiração – como é que se consegue aquilo?
Há
tanta coisa extraordinária no que já se conhece sobre o acidente e sobre a
empresa responsável pela manutenção do malfadado elevador da Glória – extraordinária
e, ao mesmo tempo, tão desgraçadamente típica daquele oportunismo manhoso que
nos (des)governa –, que mais extraordinário ainda é não ter havido mais e maiores
tragédias. Ocorreu agora, com Carlos Moedas na presidência e assustado como uma
lebre (pensar que houve um tempo em que o vi como alguém sério e capaz…), como
poderia ter ocorrido com outro qualquer, talvez até com outra empresa: um
descarrilamento em 2018, aparentemente, com “grandes falhas na manutenção dos
rodados”, foi tratado com a complacência do costume, e que só se percebe pela
demissão cívica, social, política, que aceitamos com a resignação dos derrotados.
Tudo parece permanentemente improvisado; deve ser por isso que tanto rezam
missas as ilustres trindades da pátria.
Para
fazer diferente, Carlos Moedas não precisava de berrar contra Medina, uma
paródia que há-de persegui-lo até em sonhos: podia ter começado por mandar analisar à
lupa em que condições guarda Lisboa os seus barris de pólvora, por mais belos,
apetecíveis e rentáveis.
A
percepção – tão cara ao primeiro-ministro quando convém – é a de um país espoliado
e exausto, que sobrevive apesar dos saqueadores do Estado e aos ombros de gente
animada de boa vontade e solidariedade, como os médicos que interromperam férias
para resolver e ajudar. Ainda se aprendêssemos, de facto, alguma coisa.