segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Amarelo Vivo, Amarelo Negro




Nas ruas de Paris, milhares de vândalos soltaram a raiva e esventraram a França. Calçadas queimadas, carcaças de automóveis consumidos pelas chamas, barricadas, tochas, edifícios queimados, esmoucados, pilhados. Homens e mulheres preparados para a guerra, caras tapadas, alguns com máscaras antigás, provocatórios, violentos, focados num único objectivo: destruir; instalar o caos. Na selvática loucura, estropiaram os símbolos da República cuja protecção reclamam à mercê das suas vontades. Marianne assombra-se com horror, esburacada, esbofeteada às mãos dos bárbaros, talvez os mesmos que ajoelham em profano respeito pelo soldado desconhecido. Na fúria, pintaram de infâmia, em palavras de ordem, de rude e vulgar desordem, o Arc de Triomphe, avisando, jurando, manter a França a ferro e fogo, vilmente usurpada, até à capitulação daquele a quem culpam pela barbárie.

Mas, afinal, o que querem esses a quem chamamos “coletes amarelos"? Aparentemente, começaram por não querer o aumento do imposto sobre os combustíveis, organizando-se pelas redes sociais, num protesto onde – diziam camionistas portugueses (bloqueados nas estradas contra a sua vontade) – não havia franceses. Agora, querem muito mais, eventualmente não demasiado e, seguramente, a razão assiste-lhes. Aliás, dizem que é o povo quem protesta. Não são maquinações extremistas, nem de direita, nem de esquerda, hordas de javardos empenhados em semear o caos. Não. São gente normal, sofrida, esmagada pelos impostos, cujos ordenados teimam em ter menos dias do que aqueles que compõem um mês, e que já não suporta mais um presidente dos ricos. E, talvez assim seja; mas, é difícil de acreditar quando estarrecemos, incrédulos, ante o rasto de destruição. Pode gente normal, gente pacífica, manifestar-se de forma tão ultrajante, violentando o país a que orgulhosamente pertence? Saramago imaginou, pelo menos, uma vez, que sim; que podemos, em desespero, sucumbir à mais baixa condição. Descreveu-o, violentamente, no seu magnífico ensaio sobre essa cegueira que nos torna inumanos perante as piores agruras.

Talvez, então, seja avisado olharmos. Dar ouvidos ao mal-amado arauto e, em podendo olhar, vermos. E, em pudendo ver, repararmos.

Aproximam-se eleições – um ano é quase nada – e, na ânsia de agradar, se não a todos, aos que dão votos porque são muitos, os mesmos partidos (hoje são estes, amanhã serão os outros) que nunca se entendem nas coisas fundamentais para o país – como a educação, a saúde e a justiça – conseguem sempre entender-se no esbulho da pátria, esmifrando aqueles que alimentam os cofres do Estado com os seus impostos, muitos sem empregos garantidos e sem poder, nunca, recuperar o tanto que perderam. Seremos, os portugueses, mais civilizados e pacíficos que os franceses, ou, apenas, por mais tempo? Asseguram-nos que a austeridade acabou e que podemos virar a página das privações e, no entanto, parecemos prestes a cometar os mesmos pecados que já antes nos arruinaram. 

A França recupera, em choque, da vontade do povo e, entretanto, Portugal é, outra vez, o melhor destino do mundo. Mas, é bom estarmos alerta.