quarta-feira, 31 de março de 2021

Ontem à noite fiquei a ouvir o concerto dos Dire Straits em Estrasburgo, em 2019. Eu sei que os Dire Straits já não são os Dire Straits, mas 2019 também não parece ter sido há um ano. Além disso, o texto é meu. Mark Knopfler será sempre Mark Knopfler. Mesmo sem o ar esgadelhado de tenista no final do treino e o desassombro dos anos 80, continua um monstro. Por duas ou três vezes, precisei de fazer um esforço enorme para me manter inteira. Há músicas que habitam a minha pele; assaltam-me quando menos espero. É preciso estar alerta. Os homens não choram e as mulheres menos ainda, se quiserem ser levadas a sério; toda a gente sabe, mesmo que não pratique. O choro só se tolera a solo, para não despertar pena. Antes o ódio. A não ser que se chore de alegria partilhada.

Há uns anos, numa daquelas conversas parvas entre gente que se quer muito, perguntaram-me aquela coisa trivial e pateta em conversas do género: se houvesse uma calamidade (ah!, ah!, ah!; mas era uma calamidade a fingir, daquelas que jamais nos beliscaria) e ficasses totalmente sozinha, sobreviverias sem música ou sem livros? Respondi uma heresia – mas era a fingir, não esquecer, e a segunda opção era um outro pecado mortal: sobreviveria sem música, mas nunca sem livros. Música, posso trautear algumas. Não é bem (nada!) a mesma coisa, mas aguentava-me. “Estar-se sem livros é já ter morrido.”

Claro que a poesia (também) se faz de música. Ou a música de poesia, tanto faz. Tão bom. Como se tocasse ali mesmo, o Mark Knopfler, no meio da sala, para um grupo estimado de amigos. Um resgate dos dias que sangram. Do lamaçal asfixiante, nojento, em que se transformou isto a que chamamos actualidade.

O que já é mau pode sempre piorar. Alguém havia de acrescentar isto às leis de Murphy, como (outro) corolário; não é bem a mesma coisa que, se pode correr mal, corre mal de certeza. Ou: se alguém, de repente, lhe prometer um banho de ética, é provável que acabe afogado de intenções. Se em vez de um banho de ética, o desafiarem para um combate de MMA, é provável que seja um juiz com complexos de verdade (ah, se eu tivesse a mínima competência para fazer piadas, o que por aí viria; sendo assim, é melhor não).

Não sei se à ministra sueca Magdalena Andersson lhe sobrará qualquer coisa de paciência para com as singularidades do nosso regime fiscal. Se fosse o caso, adoraria ouvi-la a propósito, por exemplo, do tal negócio das barragens da EDP, que não são da EDP. É que, depois de ter ouvido o Pedro Marques Lopes e de ter lido o João Vieira Pereira, estive quase, quase a esbofetear-me. Por estulta. Que bom que haja gente capaz de nos explicar, pilim por pilim, o que são negócios respeitáveis.

O que se passa em Cabo Delgado é um horror indescritível. Ouvi a história da Aida e da sua filha de um mês, Jacinta, em três breves minutos, de manhã na TSF – que fui ler, depois, no DN – e senti-me minúscula. Não sei onde é que esta gente vai buscar força, coragem, ou essa outra coisa qualquer para que não existe, ainda, uma definição condigna.

 

E, hoje, acordei mais cedo do que o habitual. Ainda era noite quando entrei na sala. Tinha deixado aberta uma das portadas, com a cortina corrida a um canto, e a primeira coisa que vi foi uma lua enorme na minha varanda, magnífica, contra a negritude absoluta do céu. Se esticasse um braço, podia tocar-lhe. 

Por um momento, fiquei paralisada, sem saber bem o que fazer. Corri para a máquina fotográfica, de qualquer maneira, tive preguiça de montar o tripé (mas, quem é pensaria nisto?), não fosse perdê-la de repente. Depois, fiquei sentada lá fora, na cadeira de madeira, a namorá-la lá no alto. Até que o céu se foi acendendo lentamente, e a minha lua dissolveu-se na alvorada.