terça-feira, 24 de dezembro de 2024

 




Pedi ao ChatGPT para me criar um cartão de Boas Festas. Não ficou grande coisa, porque é preciso saber pedir, e, evidentemente, falta-me o jeito. À terceira tentativa, esgotei a gratuitidade da generosidade artificial e saiu aquilo. Mas não ficou péssimo, e sempre posso compensar com a genuinidade da minha mensagem: um Bom Natal a todos os que passam por aqui, até para quem não é de Natal. Para mim, este é, essencialmente, um tempo de estar, um tempo de afecto, de abraços, de bem-querer – são esses os meus votos para quem aqui vier.


quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Não gosto de andar de avião. Não deixo de viajar por andar de avião, mas não gosto de andar de avião. Adopto e adapto estratégias – algumas quase infantis – para iludir o desassossego da viagem, juro furiosamente que não tenho medo, e, sempre que as condições mo permitem, leio. Tenho uma certa inveja daquela gente que lê em qualquer lugar, um qualquer número de páginas, numa brecha mínima de tempo: não imagino os meus dias sem livros, mas não leio na praia, não leio em filas para coisa nenhuma, não leio na cama e o avião é o único meio de transporte onde posso tentar a leitura – de carro ou de comboio enjoo às primeiras linhas. Manias. Também não tomo café em copos de plástico, nem vinho em copos sem pé – já contei.

A última viagem de avião foi longa e perfeita. Pude ler, e li “O Meças”, de José Rentes de Carvalho. De uma honestidade brutal e crua. Como sempre. Uma lâmina afiada, que penetra fundo e sem concessões na alma de um Portugal esquecido, à margem do progresso, rural. Talvez até já inexistente, não sei, como tantos outros portuguais esquartejados pelo autor, suponho que entre o fascínio e a repulsa, como ali se lê. Ou eu li. Parece simples (há quem lhe chame hiperliteratura), mas não é.


terça-feira, 17 de dezembro de 2024

“O que me inebriou quando voltei a Paris, em setembro de 1929, foi, em primeiro lugar, a minha liberdade. Sonhara com ela desde a infância, quando brincava “às senhoras” com a minha irmã. Já contei como esperava apaixonadamente por ela, quando estudante. Subitamente, tinha-a ao meu alcance; a cada gesto, espantava-me com a minha disponibilidade. De manhã, mal abria os olhos, entrava em grande agitação, rejubilava. Por volta dos meus doze anos, sofri por não ter em casa um cantinho meu. Ao ler no Mon Journal a história de uma colegial inglesa, tinha contemplado com nostalgia a estampa que representava o quarto dela: uma pequena secretária, um sofá, prateleiras cobertas de livros; entre aquelas paredes de cores vivas, ela trabalhava, lia, tomava chá, sem testemunhas: como a invejava! Pela primeira vez me apercebi de uma existência mais favorecida do que a minha. E agora, afinal, também eu estava em minha casa! A minha avó tinha libertado o seu salão de todas as poltronas, mesinhas e bibelots. Comprei móveis de bétula, que a minha irmã ajudou a escurecer com verniz castanho. Tinha uma mesa, duas cadeiras, um grande baú, que servia também de assento, estantes para os livros, um sofá a combinar com o papel alaranjado que pus nas paredes. Da sacada do meu quinto andar, dominava os plátanos da Rue Denfert-Rochereau e o leão de Belfort. Tinha um fogareiro vermelho, a petróleo, e que cheirava mal; parecia-me que deste cheiro dependia a minha solidão, e gostava dele. Que alegria poder fechar a porta e passar dias ao abrigo de todos os olhares! Durante muito tempo fui indiferente à decoração dos lugares em que vivia; talvez por causa da imagem do Mon Journal, preferia os quartos com sofá e prateleiras, mas qualquer sítio me servia; ainda me bastava poder fechar a porta para me sentir plenamente satisfeita.”

A Força da Idade, Simone de Beauvoir


“Em terra de cegos, quem tem um olho é rei”


Que o diga o Almirante, de olho verde e voz de comando, astuto submarinista no mar de destroços em que se tornou o cenário político português.


segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Já o disse antes: por vezes, a minha mente corre por caminhos desconhecidos e contra a minha vontade. Não imagino onde terá ido buscar aquele imaterial, se poucas coisas há mais materiais do que um edifício sólido. Talvez o imaterial do tempo que me transporta a outras épocas, mas não era exactamente nisso que pensava. Creio.

A propósito, quero muito voltar a Notre-Dame. Só lá entrei duas vezes, num tempo anterior ao incêndio devastador de há cinco anos, quando a Catedral era negra, sombria e bela. Agora, nos jornais e nas televisões, parece-me tão radiosa e limpa que temo tê-la perdido para o sempre que me resta.  


O imaterial também pode envelhecer mal. O Coliseu de Lisboa envelheceu mal. Carrega o peso do tempo com a decadência dos desvalidos.

De resto, a mulher ao meu lado cabeceou o concerto inteiro; por pouco, sobre o meu ombro. Sobressaltava-se a cada ovação, e, então, aplaudia energicamente como se não tivesse perdido uma nota. Estive tentada a pedir-lhe para trocar de lugar comigo, contra o desperdício da vista tão mais generosa. Mas quase não se viram telemóveis no ar e o concerto foi bom. O arranjo de Mário Laginha do Grândola Vila Morena é fantástico, o rufar dos pianos soberbamente interpretado pelos dois. Descobrir com prazer Out of Order, de Luís Tinoco; a bonita e sóbria homenagem a Bernardo Sassetti. E no fim, o rumorejar da sala embalando, baixinho, o refrão do Venham mais cinco. Foi realmente bonito. Mário Laginha e Pedro Burmester estavam felizes e tocaram com uma alegria tangível.

Bach será sempre Bach. Também de clássicos se fez o concerto, logo de início, ainda a mulher não dormia.


quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

“Cem Anos de Solidão” é um livro assombroso. Se há clássico que não acaba de dizer o tem para dizer (outra vénia para Italo Calvino), a obra-prima de Gabriel García Márquez é um desses: é preciso voltar; e voltar; e voltar. É sagrado. Adaptá-lo ao écran, numa série da Netflix, soa a heresia. García Márquez, que nunca aceitou ver o seu livro filmado, bem pode praguejar do Além, esconjurar os filhos: já tinham decidido publicar-lhe o “Vemo-nos em Agosto”, agora trazem a solidão de Macondo para a televisão, na sua narrativa circular e maldita.

“Vemo-nos em Agosto” devia ter ficado na gaveta, também concordo, mas a série que a Netflix acaba de estrear parece não violentar a arte de García Márquez, como se temia (se calhar só eu). Vi os dois primeiros episódios e achei realmente belo. Competente e belo. Não é o livro, não é suposto, mas, de momento, sobrevive soberbamente à sua própria maldição.


sábado, 7 de dezembro de 2024




 

quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Maria Teresa Horta

"Desperta-me de noite

o teu desejo

na vaga dos teus dedos

com que vergas

o sono em que me deito

 

pois suspeitas

 

que com ele me visto

e me defendo

É raiva

então ciume

a tua boca

 

é dor e não

queixume

a tua espada

 

é rede a tua língua

em sua teia

 

é vício as palavras

com que falas

 

E tomas-me de foça

não o sendo

e deixo que o meu ventre

se trespasse

 

E queres-me de amor

e dás-me o tempo

 

a trégua

a entrega

e o disfarce

 

Lembras os meus ombros docemente

na dobra do lençol que desfazes

na pressa de teres o que só sentes

e possuíres de mim o que não sabes

 

Despertas-me de noite

com o teu corpo

 

tiras-me do sono

onde resvalo

 

e eu pouco a pouco

vou repelindo a noite

 

e tu dentro de mim

vais descobrindo vales."

As Nossas Madrugadas, Maria Teresa Horta

 


“Minha Senhora de Mim” foi publicado pela primeira vez em 1971. Era precisa muita coragem para ofender daquela maneira a moral tradicional do país, que mantinha a mulher em regime de obediência ao seu papel de esposa e mãe. Assexuada. Maria Teresa Horta talvez prefira que se diga: o que é preciso é Liberdade. Por ela, foi perseguida e espancada. 

Este ano, a BBC incluiu-a na sua lista das 100 mulheres mais influentes e inspiradoras de todo o mundo.

Gosto de ouvi-la aqui:



domingo, 1 de dezembro de 2024