terça-feira, 29 de abril de 2025
Sobre o apagão.
Vim para casa, li um livro e menti à minha mãe (enquanto o velhinho short message service ainda funcionou, já que fiquei imediatamente sem acesso ao whatsapp e às chamadas de voz): que sim, que tinha a tal reserva de comida e água para dias de incerteza, como ela e a minha irmã fazem e me aconselham há anos. Há coisas em que sou bastante descuidada, mas prometo que quando a paranóia acalmar será uma das primeiras coisas na minha lista. Entretanto, sobrevivemos. O meu filho teria uns três anos, creio, quando apanhou escarlatina, mas ainda não sabíamos que era escarlatina – tinha febre, manchas vermelhas no rosto e no corpo e o diagnóstico de sempre: era uma virose. Quando o levei ao hospital pela segunda vez em menos de oito horas – porque acordou de madrugada com febre altíssima e a fugir dos bichos, os ouriços que estampavam os lençóis de que ele gostava tanto e nunca mais suportou –, disse à médica que por favor não, a virose já não me convencia. Depois de me dizer que estava segura de ser escarlatina, mas pediria o teste para confirmação, confessou-me uma coisa extraordinária: sabe, quando vemos estes quadros de manchas e febre e não sabemos bem o que é, dizemos que é uma virose. Exactamente assim, e recordo-o várias vezes. Ontem também, a propósito de todos os palpites sobre a origem do apagão: quando ninguém sabe, inventa-se. Mas há uma coisa que sobra, e é bom de saber e sentir: é verdade, há quem corra para os supermercados e esgote a água, as conservas e não sei se o papel higiénico, como na pandemia, mas prevalece uma certa sobriedade onde ainda nos entendemos sem ordens maiores.
sexta-feira, 25 de abril de 2025
Descensão
Os
últimos dias de Abril trazem-me sempre aquela cordilheira de nuvens negras
descendo da serra à janela do meu quarto, para desaguar, penitente e
silenciosa, no mar à minha varanda. Parece um tsunami, mamã, e parecia
mesmo, a parede espumante e brumosa, um tsunami suspenso no espaço e no tempo.
De
resto, também lamento não estar em Roma, por estes dias. Aproveitar-me-ia, tão
descaradamente quanto outros, do tributo a Francisco para revisitar a cidade
onde, seguramente, já vivi outras vidas, porque só isso explica a comoção que
me toma quando chego e a saudade que me morde quando volto. E foi por um triz,
porque estive quase quase, Milão-Roma no início da Semana Santa, mas, mudei de
ideias, peguei no carro e rumei a Bordéus. Uma loucura. Ninguém mais me apanharia num
avião, se pudesse percorrer o mundo de automóvel. E também gosto muito de
França, confesso. Pergunto-me sempre de que se queixam os franceses, tanto e
tão furiosamente. Talvez porque não sou tão francesa. Levo o tempo a amaldiçoar
os atalhos em que o waze me mete, para depois me render àqueles caminhos
de ninguém, seculares, e de elegância discreta. É uma liberdade fácil, esta, a de
escolher estradas pelo mapa, sem que o meu mundo se curve à gravidade do tempo.
Morreu o Papa Francisco, e o vice-presidente dos EUA foi a última figura pública a encontrar-se com o homem que fez do Homem a sua missão cristã maior. E eu, que não sou nada dada a amar um próximo qualquer como a mim mesma, penso que seria agora tempo de um daqueles pequenos milagres, uma espécie de Easter Carol com um J.D. Ebenezer Scrooge Vance a deixar-se tocar pela compaixão de Cristo, de regresso à Casa Branca de momento ocupada por um megalómano narcisista, servido por mafiosos e apostado em fazer-se adorar com artimanhas de má fé. “E o diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento todos os reinos do mundo. E disse-lhe o diabo: dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue, e dou-o a quem quiser. Portanto, se me adorares, um dia tudo isto será teu”. Enquanto não, long live Bernie Sanders. Estará longe da santidade, mas, se anda na estrada, a esgotar comícios por toda a América, acompanhado por Alexandria Ocasio-Cortez (com quem simpatizo bastante), num combate cerrado a Donald Trump, parece-me bem e necessário. Sei que desejei que deixassem o bruto ser bruto até à náusea daqueles que o veneram e, com assinalável assombro, vêem nele a proficiência de saber sempre de que lado está a manteiga, ou lá o que era, um talento imperial para o progresso social e económico, senão de todos, ao menos dos que vão ao beija-vamos-dizer-mão, para elevar o tom, mas não pensei que a coisa, que a causa, ficasse tão descontrolada. Se acreditar no Céu, talvez possa crer também no eterno Inferno, onde hão-de arder, à direita do outro, todos esses homens de bem.
quinta-feira, 24 de abril de 2025
(In)Cumprir Abril
Na
agonia de agradar, o receio de ficar à margem da glória de Francisco na hora da
sua morte vai tolhendo juízos. Carlos Moedas, o resistente, não resistiu e resvalou
para o egocentrismo patético, como vem sendo hábito; André Ventura apressou-se
a forjar a contrição calculista que se impunha a um bom intrujão; agora vem o pajem
do primeiro-ministro comunicar ao país que o Governo desta República periclitantemente
laica decidiu adiar as comemorações festivas do nosso 25 de Abril em respeito à
memória do Papa: e assim se profana a Liberdade que Francisco sempre defendeu.
terça-feira, 22 de abril de 2025
“O
Sonho do Celta” é um dos meus livros. Andou anos nas minhas estantes, a acumular
pó – porque sou compulsiva, já disse, a comprar livros, como sou a lê-los.
Quando, finalmente, o abri, consumiu-me. Não conseguia e não queria parar.
Não
lamento nada na minha vida, tão banal, excepto a flagrante inviabilidade de poder sentar-me uma tarde à conversa com os meus desconhecidos de eleição.
Vargas seria um deles, e Jorge Bergoglio também. Pesam-me as suas mortes. Devia
haver um limite para quantos desses vultos quasenossos podemos perder no mesmo
ano, também já disse; mas a Morte é astuta e caprichosa, e alheia ao meu
desgosto primário.
De
Bergoglio despedi-me no Domingo de Páscoa, quando, por acaso e pela televisão o
vi assomar à varanda na belíssima Praça de São Pedro, tão frágil, tão
desfigurado, e tive a certeza de que seria a última vez. Acontece-me às vezes: sei, e faço apostas com o destino, uma parvoíce.
Há
uma parte de mim que insiste em ver sinais onde apenas existem acasos. Voltei a
esbarrar numa exposição de Dali, desta vez em Cáceres: não sei se o persigo
inconscientemente, ou se ele me persegue a mim, lá do fundo do Inferno de Dante,
que foi o que me mostrou agora: a Divina Comédia em cem ilustrações febris,
alquímicas – como é que se faz aquilo? Já tinha visto, e foi como se nunca. É uma forma sublime de loucura, um exorcismo, tentar o abismo sem remorsos.
domingo, 20 de abril de 2025
domingo, 6 de abril de 2025
sexta-feira, 4 de abril de 2025
Nem
sabia o que era um picker,
o que diz muito do meu alheamento de algum do mundo real. Não compro muitas
coisas online, mas compro coisas online: obviamente, tem de haver alguém que
recolha o meu pedido e o faça chegar a outro alguém que mo possa enviar, desencadeando-se – a partir daquele meu clique para efectuar pagamento –
um mecanismo em roda dentada de procedimentos essenciais invisíveis aos meus olhos, mas muito
pouco românticos. "On Falling", de Laura Carreira tenta ser um
retrato sensível dessa precariedade laboral, filmando a rotina exaustiva da
protagonista com uma precisão quase documental, mas a insistência em
composições melancólicas e um ritmo ostensivamente contemplativo acaba por esvaziar
um pouco a mensagem, tornando a sequência bastante previsível em alguns pontos, e um pouco forçada noutros, até com alguma ingenuidade. Não adorei, embora haja momentos de
filmagem muito bons – desde logo, o inicial, que retrata a chegada dos
funcionários ao armazém: Laura Carreira, à conversa com o público no final da
sessão, confessou ter demorado a habituar-se àquela porta giratória de entrada, mas considero-a uma das cenas mais impactantes do filme. Depois, faltou uma
progressão dramática convincente. Há um certo vazio, uma passividade consciente
e exagerada na trajectória de Aurora – bem interpretada por Joana Santos – que
vai além de um reflexo do trabalho robótico e alienante. Embora a ideia
original seja realçar a culpa do sistema que explora e desumaniza, é
evidente, ali também, a importância de cada uma das nossas opções pessoais. Disse-se
muito – a própria actriz – sobre a necessidade latente de estabelecer contacto com o
outro, o desejo de intimidade de Aurora, encurralada na sua solidão mecânica,
mas, a mim, pareceu-me sempre mais o contrário, Aurora entregue à estanquicidade
do seu telemóvel, como, daí a pouco, a mulher ao meu lado: uma mão
levando à boca a canja de galinha, a outra correndo o écran, interminável,
apesar dos amigos que a traziam. Há muito do inferno dos outros em nós.
quinta-feira, 3 de abril de 2025
A Morte dos Jacarandás
Luís
Montenegro é, por estes dias, um homem feliz. Habita-o a certeza de ter jogado
uma cartada de mestre; daí o sorriso escarninho que não o abandona há semanas. Conhece bem as regras não escritas da cultura democrática
portuguesa. Obviamente, não fez nem mais nem menos do que faz qualquer
português – só faltou acrescentar que só não o fazem os portugueses que
não podem (os ingénuos não contam). Se o
PS tivesse visão, como se diz, talvez tivesse escolhido José Luís Carneiro em
vez de Pedro Nuno Santos como Secretário-Geral. Os portugueses prodigamente invocados nas homilias políticas talvez não levem muito a sério as
acusações de leviandade de alguém que traz colado a si o episódio whatsapp na
gestão da TAP. Todos os políticos são iguais, mas há éticas mais estéticas do
que outras. Entretanto, não percebi nada daquilo do Bolhão, porque cheguei
tarde e a más horas e sem paciência para.
Em
Lisboa, levantou-se um protesto em defesa dos jacarandás da 5 de Outubro –
petições de cinquenta mil assinaturas e gente que ameaça amarrar-se às árvores.
É sabido que não gosto de jacarandás. Enjoa-me o cheiro, exaspera-me aquele
rasto pegajoso que vai sobrando sobre a calçada e prefiro o roxo intenso ao
azul-lilás. Não há quadro capaz de me convencer da beleza da coisa. Outra gente
aponta a extravagância de nos erguermos contra o abate de árvores, mas não
contra a justiça que permite a três sacanas prosseguir a actividade influenciadora sendo
suspeitos com provas dadas em tictoks de terem violado uma miúda de dezasseis
anos. Alegadamente. Excepto pela publicação infame, parece que demonstradamente. São novos, não têm cadastro, não estudam, não trabalham e ganham dinheiro
com uma espécie de "esquema Ponzi piramidal que está no limiar do
crime". Não há “Adolescence” que
nos cure disto.





