quarta-feira, 29 de maio de 2024

O Retrato de Dorian Gray


A sensacional mudança de Sebastião Bugalho-comentador para Sebastião Bugalho-candidato-(a)-político (mesmo que independente, como o próprio gosta de deixar claro), operou uma outra mudança, não sei se apenas na forma como passei a olhá-lo. De repente, o jovem talento da comunicação – arrogante, concedo, porque há sempre uma certa dose de arrogância na consciência dos dotes próprios, que não será pior do que a exibição desastrada e descarada daquela modéstia artificial e sonsa a que se prestam outros, mas adiante – medrou e transfigurou-se. E, agora, de cada vez que o ouço, vem-me à memória aquele magnífico clássico. Excepto que a decadência do retrato não ficou escondida no sótão, pelo contrário, é ostensiva e cultivada. A corrupção voluptuosa da inocência, a obsessão pela busca insaciável do prazer de ser par e ímpar, um igual e, ainda assim, único, numa embriaguez indulgente de si mesmo. Marta Temido chamou-lhe imaturo e feriu-lhe de morte o orgulho erecto.  


terça-feira, 28 de maio de 2024

Vertigem


E este silêncio rubro, ondeando lento sobre os ombros nus de um tempo suspenso. Luas de pedra sobre o ar quieto, cristalizado: a vida, a morte, o amor e o ódio, paixões dissolutas, lagos de luz dourada no regaço côncavo da rocha cinzelada de séculos. Cicatrizes do passado. A névoa ocre, fino véu em decomposição, e o odor macerado do abandono. Mil cambiantes de cinza sobre o dorso do vento átono, imperial, e o latejar compassado, visível, sob a pele branca de mármore do meu pulso fino, habitáculo de memórias ancestrais.


sexta-feira, 24 de maio de 2024

Éramos ricos e não sabíamos


Se a economia não crescer estrondosamente, como, aparentemente, o Governo de Luís Montenegro acredita(?), sempre podemos pôr aquele relógio do doutor Paulo Portas a contar o tempo que nos falta, mas em sentido inverso. 



quarta-feira, 22 de maio de 2024

Também ando nisto...




 

Feios, Porcos e Maus

Mas sem o glamour da sétima arte, porque Arte é coisa que escapa aos palermas, como se percebe, não só pela necessidade de recorrer a insultos do tempo da minha tetravó, mas também (e talvez mais) pela alarvidade de riso que ainda (lhes) provoca. Alegadamente...


Não tinha percebido bem o alcance da metáfora no discurso de Isabel Moreira: pareceu-me demasiado  mesmo para alguém capaz de pintar as unhas no decorrer de um debate parlamentar , apontar a cobardia mole e murcha e pequena daquele grupo de broncos a propósito de uma piada que nem chega bem a sê-lo, idiota, sobre a suposta preguiça dos turcos. Não que eu discorde. Não veementemente, shame one me: a meu ver, já que andamos nisto, merecem-no. Preferia apenas que, naquela Assembleia, estivesse reservado ao chega, assim também em pequenino, aquele tipo de fel. Um programa na rádio Observador depois, talvez o discurso de Isabel Moreira tenha sido uma espécie de desabafo com estrondo.

Acredito perfeitamente que, naquela mole (a beleza desta nossa língua) de ofendidos, haja gente bem capaz do insulto mais rasteiro, da piadilha de esgoto – basta ler alguns comentários no Observador dos acérrimos defensores de Ventura e seus lugar-tenentes: mesmo descontando a tal cobardia mole, supondo que alguns daqueles valentes seriam incapazes (e seriam incapazes, muitos) de dizer cara-a-cara o que ali vomitam letra-a-letra, é espantoso. Também é espantosa aquela virilidade néscia que ainda encontra graça na desgraça mais bolorenta: “boa noite, senhora deputada”, para cumprimentar, à hora de almoço, uma mulher negra, mugidos para tentar ofender uma mulher? Ena.

Com o histerismo e o malabarismo habituais, André Ventura já veio ameaçar com a “queixa-crime”, agora contra Isabel Moreira. O homem não pára. Um milhão e tal de votos depois, o “não é não” de Luís Montenegro enraiveceu o líder do chega. Afastado dos tachos que brilham (não se sabe até quando, é um alarmante facto), André Ventura está empenhado em imundar, nada mais. Mas quem é que é capaz de se sentar com aquilo e conversar sobre o que quer que seja, e menos ainda sobre as soluções de que o país tanto precisa?


P.S. Alertam-me para o facto de o discurso de Isabel Moreira ter mais a ver com a queixa-crime contra o Presidente da República do que com as piadolas do outro senhor. E eu ouvi a parte do discurso onde isso era evidente: por algum motivo, a minha mente fútil reteve apenas a gritaria à volta da liberdade dita de expressão.


segunda-feira, 20 de maio de 2024

sábado, 18 de maio de 2024


A luz tomba, oblíqua, com a firmeza inclemente de mil espadas afiadas, atiradas por entre os troncos longos dos pinheiros. Estilhaçam as sombras mudas, móveis, no chão de musgo fresco. Teatro de sombras na tela branca do tempo que flui lento entre as margens do esquecimento. A Natureza impõe o seu domínio, o silêncio vive e vibra, dourado, indomado. Adormeço-me. O mundo é esse lugar sinistro, mas resisto, recuso. Acredito.


A meu ver...


... um canalha é um canalha, independentemente da raça (vocábulo que eu cria prescrito e proscrito), da etnia e etc. André Ventura é, a meu ver, politicamente canalha. Intencionalmente, artificialmente, teatralmente, não importa.  Mas nem tudo o que diz se inscreve no discurso de ódio, ou eu não sei bem o que é um discurso de ódio. Não estou tão segura do escândalo que é o Presidente da Assembleia da República não ceder à fúria de um tipo gelado, como dizia o outro senhor, com os resultados que se viu. Não havendo uma fórmula mágica para impedir a proliferação daquele populismo tóxico e corrosivo, protofascista, talvez o melhor seja mesmo  no limite do que possa ser considerado crime (atirar piadas requentadas mais ademanes sobre a "preguiça dos turcos", ou a "paciência dos chineses" não parece)  deixar aquela turba de políticos de taberna, e de caverna, mostrar a massa de que é feita. Ainda sou suficientemente ingénua para acreditar que não há um milhão e tal de patifes naquele um milhão e tal de povo que votou no … coiso: seria uma forma demasiado simplista, demasiado cómoda de ver as coisas. Haverá os que gostam de ver arder, de terra queimada, sim, aqueles a quem servem todos os rótulos, mas há-de haver lugar ao repúdio e há-de haver outra gente, por mais desesperançada, que acabe por dizer chega ao chega. Se não for o caso, elejam-nos como Governo; em Democracia manda o povo, veremos quanto tempo resiste a virtude com slogans de barro.

De resto, há uma falta de cordialidade e decoro no discurso político que não é exclusivo daquele partido. A forma e os termos em que a nova Ministra do Trabalho se foi referindo, nos últimos dias, a Ana Jorge e ao seu trabalho na Santa Casa da Misericórdia são de uma rudeza espantosa, mesmo que houvesse verdade em tudo aquilo, e nem é certo. 

Não sei se tenho idade para dizer que nunca antes os homens e mulheres que fazem a nossa classe política me pareceram tão medíocres, mas nunca antes os homens e mulheres que fazem a nossa classe política me pareceram tão medíocres. Não ajuda nada, um Presidente da República cada vez mais alienado, que desbaratou, devassou, todo o capital de prestígio e simpatia de que dispunha no seu alto cargo, chafurdando na espuma suja dos dias, todos os dias, julgando-se imune a qualquer nódoa. Marcelo Rebelo de Sousa permitiu a André Ventura aquele número de circo sobre a traição à pátria, que o jornalismo de referência, por seu lado, se empenhou em bem cobrir, entre o cio e o nojo, como sempre que a actualidade ameaça lama.





 

sexta-feira, 17 de maio de 2024

ContraNatura


Uma exposição “contra natura”, pensada por um artista “apaixonado pelo ambiente”. Qualquer coisa como para mostrar “a resistência e resiliência da natureza”, com o objectivo de não-sei-quê, que me perdi na eloquência de tanto talento.

As plantas seriam recuperadas um mês depois, atestando a tal robustez da coisa…

Melhor do que esta arte, a daquele outro italiano que vendeu o rectangulozinho pintado no chão, com um certificado de autenticidade de uma obra invisível aos olhos – o essencial, afinal, coisa a que só as almas mais brutas são insensíveis: essa, pelo menos, atentou apenas contra a integridade do comprador, supondo que tenha havido realmente um comprador. Desses, visíveis





 

terça-feira, 14 de maio de 2024

A primeira esposa mostra o apartamento para alugar. Um décimo e último andar, de amplos terraços e grinaldas de pedra maciça, ogivas perfeitas como arcos de catedral. Não sei a partir de quantos andares um prédio ameaça arranhar os céus, de um décimo andar não será, mas, dali, é espantosa a vista sobre a parte mais baixa do bairro antigo, sobre outros terraços de outros prédios.

Todos os edifícios residenciais crescem para um terraço comum, com estendais de roupa a secar ao sol e tapetes debruçados sobre os parapeitos de betão – e, uma vez por ano, altar de sacrifício onde os homens velhos vêm degolar o cordeiro de Deus para o desjejum (não haverá algo de profano nisto?)

O marido está na Europa, em lua-de-mel com a segunda esposa. São uma família relativamente liberal, ela pode tratar de alguns negócios na ausência dele, e algum nervo do meu rosto, do meu corpo, deve ter-me traído, para abrir um parêntesis de explicações copiosas à margem de uma conversa rasa sobre detalhes de arrendamento. Aceno que sim, esforço-me por sorrir, finjo que tudo me parece conforme, tão conforme como os tapetes pendurados nos murais brancos, um debrum ininterrupto de cores vivas como pássaros, e deixo de ouvi-la por momentos. O vento traz uma brisa de mar, que sei perto, mas talvez não passe de imaginação minha, como as sombras longas, rastejantes, na parede branca defronte.

No cimo da avenida, na torre da Grande Mesquita, anuncia-se a hora da oração; sempre aquele grito áspero que nunca deixará de me sobressaltar, a que nunca me habituarei, Allah hu Akbar, e não sei há quanto tempo estou ali sozinha, no terraço, sem rasto da primeira esposa. Vou encontrá-la na cozinha, de costas voltadas para a porta, ajoelhada sobre um tapete improvisado que me parece o mesmo lenço que ainda há pouco lhe cobria o cabelo negro, negro corvo, sedoso ao olhar, que só algumas destas mulheres podem orgulhosamente exibir. Toda a beleza no cabelo e nos olhos.

Volto ao terraço. Gosto das ruas que se vêem dali, dos olhares que não se cruzam e desses outros que carregam sonhos, da gente que sobe, apressada, a avenida larga, dos homens encostados aos muros baixos, encerrados nas suas histórias por contar, do cheiro a pão cozido a lenha que subiu comigo no elevador estreito de portas verde-musgo. Sei, desde o primeiro momento, que vou ficar.


domingo, 12 de maio de 2024




 

(Adoro-a)

Com todos os olhos em Gaza

Uma punição colectiva é, no mínimo, o que Benjamin Netanyahu está a executar em Gaza, sob o olhar complacente do superior Ocidente, porque os Direitos só são Humanos quando os humanos são dos nossos. Não sei se chama genocídio àquela orgia de morte e destruição, mas o nome não importa muito: é uma matança sem freio que ultrapassou há muito o direito à defesa.

No princípio, não parece muito diferente de arrombar apartamentos para agredir imigrantes se há (há?) imigrantes a aterrorizar a vizinhança. A diferença entre uma tragédia e uma estatística, diria não se sabe bem quem, mas com o mesmo cinismo com que acomodamos o terror aceitável: Israel está no seu direito de dizimar cidades inteiras, mandar evacuar populações inteiras, encurralar, matar tudo o que mexe, porque há um agente do Hamas em cada sopro que resista.

Israel foi alvo de um ataque hediondo, e é impossível imaginar o terror de ser agredido e feito refém por uma organização terrorista como o Hamas; Israel deve poder proteger-se, seria esmagada se não o fizesse, e terá tanto de hipócrita como do mais intrinsecamente humano sentir mais empatia com a tragédia daqueles que nos são mais próximos – suponho que no modo de vida também –, mas a culpa ou a falta dela não são um detalhe geográfico, um pionés no mapa mundi, o Mundo tem de estar muito doente para assistir e aceitar a vingança como forma de justiça, só porque a vingança é dos nossos, é amiga. Não sou deste Mundo. Não é possível clamar contra a Rússia, gritar a Vladimir Putin que retire as suas patas assassinas da Ucrânia e continuar ao lado de Benjamin Netanyahu no seu ataque predador – denunciá-lo é o que tem a ver com a defesa dos “valores ocidentais”, não o contrário.


quinta-feira, 9 de maio de 2024


É a segunda vez que me encontro com esta relíquia.

Gosto especialmente do “Renovar o Céu, arranjar as estrelas e lavar a lua”, dos “brincos novos para a filha de Abraão”, “Avivar as chamas do Inferno, pôr um rabo ao Diabo e fazer vários concertos aos condenados”, Retocar o Purgatório e pôr-lhe almas novas”: será uma vez única em que uma nota de despesas quase quase se aproxima de um poema, erros ortográficos (ou não) à parte.

Uma delícia.



Ter-te-ei sonhado, a ti, o meu vício secreto, na voragem predatória do vazio que me apetece?


quarta-feira, 8 de maio de 2024

Mamã, ouve lá isto...




 


Gosto. Quem é a Iolanda?


terça-feira, 7 de maio de 2024





Dissolvente

Atravessar o túnel da Gare do Oriente, no parque das Nações, é desolador. Um corredor imenso ladeado por pequenas ilhas de cobertores gastos, dormitório improvisado para dezenas de pessoas sem outro tecto. Há imigrantes e portugueses, gente que não trabalha e gente que trabalha, há crianças e cães, pais, mães, pessoas sós, novos, velhos, numa amálgama de desesperança e abandono. E há a vergonha que se encolhe e se esconde sob as mantas, nas horas de maior movimento.

Não há nenhuma discussão séria possível de ser feita sobre “reparações históricas” sobre os escombros desta miséria. Ou sobre as condições em que acolhemos os imigrantes que procuram aqui um esboço de um projecto de vida. André Ventura cavalga sem pudor a agonia deste naufrágio, e ninguém se atreve a tirar-lhe a palavra e procurar compromissos, soluções. Há um caldo de cólera ostensivamente ignorado, e é estarrecedor, a quantidade de gente que acha aceitável a apologia da “justiça pelas próprias mãos”, mesmo sem saber-se ainda se foram aquelas pessoas as responsáveis pela tal "onda de assaltos" que se vive naquela zona do Porto. E sabendo-se, que justiça seria esta, pela calada da noite, encabeçada por grupos de encapuzados armados de bastões e raiva?



Tinha saudades disto.


Que bom, ter-te de volta, querida Gaffe.



sexta-feira, 3 de maio de 2024

Olive Kitteridge


Trágico, cómico, sombrio, (quase) alegre, obsessivo, depressivo, absurdo, sobre tudo, sobre nada. Frances McDormand é extraordinária, mas Frances McDormand é extraordinária; o que surpreende é haver tantos extraordinários: Olive Kitteridge seria outra coisa qualquer, enfadonha, sem aquele elenco. Lembrei-me do filme As Confissões de Schmidt, que jamais sobreviveria sem Jack Nicholson. Outro extraordinário.

Sim, este mundo também me baralha ainda; é o que torna tão urgente viver.