sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

 

O professor de Química Orgânica falava da água com amor. Imaginem, dois átomos de hidrogénio, um de oxigénio, juntos, polares, numa geometria angular. Uma molécula aparentemente simples, não é? E nessa simplicidade, um extraordinário fenómeno que molda oceanos, gera vida, desafia a banalidade. Sem a ligação de hidrogénio, delicada e poderosa, não existiriam rios abrindo vales, ou nuvens encaracoladas, gotas de chuva cruzando caminhos sobre o vidro da janela. Padrões singulares sobre a estrutura do gelo, gelo cobrindo a superfície dos lagos, insectos caminhando sobre as águas como Messias. Vêem, como o hidrogénio de uma atrai o oxigénio da outra, esse, o hidrogénio da próxima, uma dança íntima, invisível, e, no entanto, capaz de erguer o mar do seu próprio ventre; aquele vasto mar da Nazaré, implacável como uma sentença, um corpo denso, líquido, inclinado sobre o vazio, invocando o caos quando o céu parece vergar-se sobre o próprio ar, ali, rente ao vértice brumoso da onda. Na iminência do abismo. O mar é conspirativo, na Nazaré. 


Luís Montenegro ainda tem condições para exercer o cargo de Primeiro-Ministro?

 

Somos reféns desta fronteira muito ténue, entre a honestidade (invocada em vão, tantas vezes) do indivíduo e a astúcia da advocacia bem temperada, onde é sempre possível acomodar os (a)pesares de consciência. O país é pequeno, escrutínio é Voyeurismo – afinal, há vida para além da política. No limite, assinamos de cruz, ou não guardamos memória dos excessos. 

E Ana Paula Martins, noutro sentido, ainda tem condições para permanecer como Ministra da Saúde?


quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

Atracção pelo grotesco

Sigo com desmesurada atenção os escritos dos nossos, salvo-seja, mais extasiásticos admiradores de Donald Trump, e custa-me a crer, juro, no gozo estampado em cada epístola.

Na doutíssima opinião que emprestam às genuflexões sobre o assunto, todo aquele que não se baba diante da egrégia visão de novo mundo dessa MAGNA figura sofre de uma lamentável falta de lucidez, senão de estupidez crónica. No princípio, era a economia; depois, a rejeição feroz da esquerda-woke, do espírito de rebanho, da bondadezinha de algibeira, o presidente dos EUA apresenta-se como o salvador do mundo e da liberdade de expressão, desde que o mundo lhe beije o mais à mão e a liberdade de expressão não lhe contrarie a megalomania. O grotesco é o novo evangelho.

 

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

 

Etéreo, como um sopro incapaz de deslocar o pó. Um eco leve, tão breve que nem na sombra se demora; que não se prende a nada nem reclama espaço. Vai e vem sem deixar marcas. Impermanência. Não é essa a essência do tempo que me habita? Darás por mim, quando me for?


terça-feira, 25 de fevereiro de 2025




 

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

 

Continuo a amar a decadência de Roma. As ruas sujas, o trânsito caótico que pulsa com impaciência orgânica, o crocitar das buzinas dissolvendo-se no canto dos pássaros, no rumorejar distante das fontes antigas. O tempo vibra numa frequência inexacta, dobra-se, insinua-se nas frestas dos séculos; toma consciência de si. Roma é um estado de sobreposição, fracturado, na iminência do colapso. Ainda lavram as chamas sob a loucura de Nero, e a luz ainda dança no mármore de Bernini esculpindo a religiosidade erótica de Santa Teresa. Persisto no espaço que hesita entre os dois.



terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

 


Há, na tua espera, um abismo de silêncio, um convite, o limite invisível da vertigem.





segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

The Literary Man Obidos Hotel: tem críticas excelentes, está localizado na bela vila de Óbidos e é um desses hotéis que se dizem de livros – o que poderia correr mal? Serei eu, que não o soube apreciar.

Para ser justa: a cama, óptima, de lençóis branco imaculado, sem um único vinco, que é exactamente como eu gosto de os sentir na pele, quando me deito; os excelentes ovos do pequeno-almoço – parece fácil, estrelar ovos perfeitos, mas não é; a simpatia genuína dos funcionários; acordar com o tagarelar dos pássaros lá fora, mesmo antes da chuva. Deveria ter bastado, era apenas uma noite. Mas não gostei nada do cheiro a humidade pelos corredores (e, embora menos intenso, no quarto), nem do estado das alcatifas – pormenor de decoração que, não por acaso, detesto. A decoração, aliás, é de um rústico demasiado artificial, para o meu gosto. Nem os livros me salvaram da desilusão, não porque levasse intenção de ler algum – levo sempre os meus –, mas porque a enorme amostra não corresponde a igual oferta: títulos repetidíssimos, autores mornos, e, last but not least, para não destoar, não vislumbrei um único livro em português (de autores portugueses, nem falo, apenas os retratos de rosto a decorar algumas mesas da sala de jantar), com excepção de meia dúzia de manuais já não me lembro de quê, pousados no chão, por baixo de uma estante. Em inglês tudo o resto que me foi possível ver, e vi bastante. Não é um crime de lesa-pátria, há milhares de livros, escaparam-me esses com toda a certeza, mas, pessoalmente, não trago saudades. Já que estou nisto, também não fiquei encantada com a livraria instalada na antiga igreja de Santiago do Castelo. Chata. A igreja também.

Óbidos, pelo contrário, apesar da ruína – ou talvez por isso – mantém grande parte do seu encanto. Nunca me canso das suas ruas, dos passeios pela extensa muralha, da vista, do pôr-do-sol, do mural de azulejos da Porta da Vila, da bela Igreja de Santa Maria, cujo exterior quase modesto dificilmente antecipa o(s) tesouro(s) que lá se esconde(m).

Entretanto, morreu Pinto da Costa e o acontecimento tomou de assalto a actualidade. Ao contrário do que parece ser o entendimento de alguns, nestes momentos, a morte não purifica e, seguramente, não santifica. Jorge Nuno Pinto da Costa estava longe de ser santo (nem o desejaria), e a atenção que dispensamos ao futebol é coisa que nunca cessa de me espantar. Mas – ah!, tenho um mas –, podemos ter opiniões assanhadas e conflituosas sobre a mesmíssima pessoa, e o que está a acontecer na minha cidade do Porto jamais poderia deixar-me indiferente. A parte decente de mim tem uma opinião em contra-mão com a outra, a que lamenta a morte do homem que conheci como presidente do FCP desde que tenho memória do tempo em que o meu pai me levava, a mim e à minha irmã, minúsculas, aos jogos nas Antas, para ver o Porto e, inevitavelmente, ouvir a mulher do sr.A. insultar os árbitros em futebolês correcto. O futebol também tem razões que a razão, não só desconhece, como nunca aprovaria, se soubesse.


terça-feira, 11 de fevereiro de 2025


A língua, como o mar, tem as suas marés. Palavras dóceis, fáceis, vêm e vão, sem escavar fundo nas camadas do ser; não deixam vestígios. Gosto das outras, pesadas, persistentes, dedilhando versos no avesso da pele, em vermelho vivo, explodindo silenciosas como relâmpagos antes de rugir o trovão; as que não cabem na devoção apressada dos fingidores. Rasguei as tuas cartas de amor.



sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025


 

Amendoeiras em Flor

 


Não são, claro que não são. Acho que nem há amendoeiras, aqui onde estou. Só aquelas, que o pôr-do-sol finge, tinge, à minha janela, quando lhe apetece. 

O edifício onde tive o meu escritório nos últimos dezassete anos foi vendido; para ser reinventado. Escritórios na mesma, mas àqueles preços estratosféricos, que talvez se vendesse um rim. Maravilhoso mundo liberal. 

Saí em Junho, como quase toda a gente. Tive vontade de chorar, o que raramente me permito, e foi o caso: não resolve nada, não é?, e o que possa trazer de alívio nem sempre compensa. Mas, às vezes, o Universo conspira a meu favor. Queria muito ficar na mesma avenida e (man)ter uma janela  pelo menos uma  que, como as anteriores, vestisse de gala os meus entardeceres. É esta. De onde vejo amendoeiras de luz nas tardes de Inverno. 


quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Insubmissa


A mulher, deitada no relicário de vidro, exala os últimos suspiros. Não lhe vejo a cara, porque jaz envolta numa mortalha de linho branco, como uma múmia. A igreja é escura, de contornos disformes, e o tecto tão alto que chega ao céu. Na verdade, parece não ter tecto: vejo o manto negro da noite estrelada e a unha curvada e fina da Lua em quarto crescente.

Leio-lhe versos de Anunciações, à mulher que ninguém vela,

“Ele vai enumerando

as tentações

em que ambos sempre caem

entre o mal e o pecado

a nudez e o desejo

o beijo e o abraço

o prazer em que

se cumprem

e o gosto do recomeço

os corpos onde entretecem

a paixão e o segredo

entre a luz e o orgasmo

chegando à raiz do medo”

 

eu, que nunca sonho, sonhei com a palavra de Maria Teresa Horta. E, quando raramente sonho, não é bem um sonho: são fragmentos, absurdos e dispersos, como estes.

Foi-se o corpo, apenas. Não há nada que possa verdadeiramente morrer em Maria Teresa Horta.


domingo, 2 de fevereiro de 2025


O filme é longo, e não contei o tempo que decorre desde o momento em que Rubens Paiva é levado da sua casa no Leblon e o dia em que Eunice regressa, exausta e imunda, à mesma casa depois de passar vários dias em cativeiro, detida para interrogatório. Mas, durante todo esse tempo, na sala de cinema, fez-se silêncio absoluto. Havia uma tensão palpável. Nem pipocas, nem telemóveis, nem sussurros no escuro, ao ouvido – nada. Há muito tempo que não vivia um momento de cinema desses. Também por isso valeu a pena.

Talvez a família Paiva não fosse tão feliz como Walter Salles a retratou; e, para mim, o filme poderia ter terminado quando Eunice e os cinco filhos deixam o Rio de Janeiro – com perdão para a magnífica Fernanda Montenegro, que, assim sendo, não teria aparecido. Talvez eu também levasse demasiadas expectativas. Mas não deixa de ser um bom filme; atordoante, às vezes. Todo o elenco é magnífico, na verdade, não só Fernanda Torres, embora ela evidentemente. É sinistro, haver tanta gente que reclama o direito à liberdade, enquanto venera a ordem desses regimes ditatoriais, imposta pelo abuso, pela perseguição e morte daqueles que ousam desobedecer.