quarta-feira, 31 de julho de 2024


Há uma melodia silenciosa sob a pele, no pulsar das veias finas, azuladas, azul, azul-abismo. A ausência que observa o seu próprio fim; que morde o avesso da carne com ânsias de desespero. O peso surdo do silêncio, o meu nome tatuado numa página em branco. Ouves? A palavra que se cala antes de nascer?



A Arte da Discórdia

Perdi a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris. Quando voltei à superfície, reinava a discórdia em torno da Última Ceia, que afinal era a Festa de Dionísio, que afinal era uma afronta ao cristianismo, que afinal era uma celebração da diversidade. 

Já não vou a tempo de decidir imparcialmente, há um coro histérico de dizeres, entre ofensores e ofendidos, que impede um olhar isento. Há pedidos de desculpa e há ameaças de morte. É insano. Por outro lado, espanta-me o espanto das direcções artísticas que se metem nisto: não podem ser nem tão ignorantes nem tão ingénuos, pelo que nunca percebo os piedosos pedidos de desculpa depois do mais que previsível desastre. Está aqui, é isto, é um trabalho artístico, ofensivo ou não, pensámos assim, criámos assim. Ponto.

Fui espreitar, claro. Não achei ofensivo, mas também não achei belo. Não gostei. Pode ser apenas por preconceito, não sei. É verdade que não amadureci ainda (e, francamente, duvido que lá chegue) alguns conceitos de igualdade e inclusividade que me livrem, por exemplo, da estranheza de ouvir dizer “pessoas que menstruam”, ou a gravidez é “culturalmente entendida como exclusivamente feminina” – ninguém sara por decreto, e esta imposição bruta e à bruta de uma suposta linguagem neutra corre o risco de resvalar para o embuste, se divide e não une, furiosa e soberba. Não há decreto que obrigue o pensamento.

Fico-me por Lady Gaga e Céline Dion. Gosto mais da primeira, é um facto, mas: Céline Dion canta uma das músicas mais enjoativamente românticas que ainda gosto de ouvir; acho formidável vê-la ali brilhante e maravilhosa apesar da sua doença terrível; e Edith Piaf é eterna. 


Marta Pereira da Costa




 

segunda-feira, 29 de julho de 2024

O meu Porto de Abrigo sempre

Na Igreja dos Congregados ofereceram-me um santinho com a oração em inglês. Mas, enquanto me chamarem meninaenquanto puder vir encher-me de mimos, este Porto ainda é (o) meu.









 





domingo, 28 de julho de 2024




 

sexta-feira, 26 de julho de 2024

Há sempre um certo grau vertigem na política americana. Das somas astronómicas que financiam as campanhas eleitorais, ao extremismo radical que elevou Donald Trump. É nessa vertigem, suponho, que cabem a atenção e o capricho que alguns de nós dedicamos àquele palco de guerra, para espanto dos mais sadios e sensatos, que aconselham – e muito bem – que se dê antes importância à ruína doméstica: mas como, se tudo aqui é tão cinzento, tão lamacento, tão previsível? “Grupo detrabalho da JMJ custa 35 mil euros por mês e mantém funções até final de 2024, equipa liderada por José Sá Fernandes deve custar mais de 1,3 milhões, em dois anos e meio e só em salários. A este custo, acrescem despesas com deslocação ou combustível.” A sério? Ninguém diria. Parece que ainda há muito que fazer. Valha-nos o estrondoso retorno que aquilo teve, não teve?, ninguém sabe ainda, mas há-de ser imenso, “absolutamente extraordinário”, não se espera menos de um palco e uma pala que estão para Lisboa como a Torre Eiffel está para Paris. Também há aquela auditoria que aponta para 60% de arrendamentos ilegais: "Autoridade tributária não tem um “plano abrangente” para controlar o arrendamento não declarado, mesmo conhecendo dados sobre os fornecimentos de água, energia e telecomunicações". Um país que se permite tal indolência, um país pobre que se permite tal indolência, é um país falhado; a vários níveis. Por isso, sim, volto as costas, deixo-me arreliar pelo duelo Trump vs Kamala Harris. 

De repente, parece-me possível que Kamala Harris venha a ser a 47ª presidente dos EUA. Na base da fé, confesso, preceito que, por estes dias, não deve andar totalmente arredado da mais apurada análise política, posto que se passou da impossibilidade de substituir Joe Biden – não havia tempo nem competência maior – para a impossibilidade de o manter na corrida, perdendo apoio e financiamento: seja o que Deus quiser, e, se Deus quis salvar um imbecil pela orelha, matando um bombeiro pelo caminho de uma bala católica apostólica romana, deve ser para não privar o mundo de assistir à derrota de um fanfarrão ignorante e machista por uma mulher estéril, louca, perigosa e mal resolvida (isto continua tão indigente que nem merece indignação), Deus não está para causas maiores, ou o Mundo itself seria já o Paraíso.

Barack Obama e a augusta Michelle (eu continuo a pensar que Michelle seria capaz de derrotar Trump com um elegantíssimo pestanejar de negro corvo, mas, e o depois, a tarefa é árdua) já declararam o seu apoio a Kamala Harris. Falta Taylor Swift: uma palavra sua, não sei se ainda dizem; outra radical sem filhos, exemplo péssimo para as novas gerações, de um mau role model para um mau role model, os EUA e o mundo entregues a perigosíssimas mulheres não reprodutoras. Tão patético, tão caótico, tão dramático. Explosivo. Há muito tempo que não havia tanto em causa. O próprio Trump pode não passar de um peão, se prestarmos mais atenção ao seu (espero) futuro ex-vice-presidente. 

Quem é que, no seu perfeito juízo, quer perder tempo com o rubor baço da política interna?


quinta-feira, 18 de julho de 2024

Da Vida de Brian

 

The shot is the sign…




O Partido Republicano está a um pequeno passo de se converter numa seita-maga-republicana. 



“It is absolutely necessary, for the peace and safety of mankind, that some of earth's dark, dead corners and unplumbed depths be let alone; lest sleeping abnormalities wake to resurgent life, and blasphemously surviving nightmares squirm and splash out of their black lairs to newer and wider conquests.”

At the Mountains of Madness,  H. P. Lovecraft


quarta-feira, 17 de julho de 2024

Vou cometer um pequeno crime. Mais ou menos. Este canto é demasiado modesto, na verdade, para que isto se possa chamar um crime crime. E não quero correr o risco de o perder, como aconteceu com o seu artigo sobre Michael Jackson, que nunca mais encontrei.

Tenho uma relação de amor-ódio com Clara Ferreira Alves, entre o ler e o ouvir, mesmo discordando com muito, frequentemente e em ambos os casos. Não neste, para que fique claro, em que concordo mais do que discordo.


"Trump Trauma

Trump entrou na história americana. Está convencido de que Deus o protegeu. Não Jesus, Deus Ele mesmo

 

“Money, money, money

Must be funny

In the rich man’s world”

Abba

 

Não se concebe um texto sobre a Convenção Republicana e o grande, o ciclópico Donald J. Trump, a citar Yeats e o poema sobre o centro que não segura, “Things fall apart; the centre cannot hold”. Abba é muito mais adequado e a canção ‘Money, Money, Money’ podia ser o hino da América. O mundo dos ricos é mais divertido do que o dos pobres, mas... os pobres querem eleger os ricos. Como é que isto aconteceu é o tema do livro de J. D. Vance, “Hillbilly Elegy”. Best-seller, topo da lista do “New York Times”, e quantos podem dizer o mesmo? Até os liberais acharam que era a melhor explicação para a vitória de Trump em 2016. J. D. é um convertido ao trumpismo, depois de o considerar hitleriano e um vácuo cultural. A divina América respira os vapores da religião, onde todos os conversos são bem-vindos. E não, Trump não é Hitler.

Disse J. D., vamos lá tentar perceber essa coisa dos pobres que repudiam a assistência social. Os desempregados pela automatização e o outsourcing das manufaturas no estrangeiro, os destituídos pelo fim dos modos tradicionais de cultivar e crescer, os agricultores falidos, os desempregados pela agonia do carvão e a quimera da transição energética dita “verde”, assoberbados por uma economia de serviços e gente qualificada que eles, os trabalhadores manuais, os operários, não acompanham. E aqueles de que ninguém fala, os desempregados da nova economia digital, tão distante das minas e das linhas de montagem, das oficinas e dos tratores, como Marte. Um mundo obscuro que não penetram e que utilizam para comunicar a raiva, o desespero, o rancor e a explicação implausível da realidade, conhecida por teoria da conspiração. O mundo da rede e das redes, onde se formam grupos orgânicos de interesses, ódios e ilusões, células que não param de crescer e se esquecem de morrer. Os pobres que detestam o Estado, os governos e o assistencialismo. Os que querem, como J. D., subir a pulso e ganhar um salário “honesto”. E estimam o sucesso dos ricos, também conhecido por sonho americano.

Quem viajar pela América dentro, aquela América que não aparece nos filmes e no streaming, que não emite em HD, e que nenhum realizador realista quis filmar ou observar, ao contrário do que fez o realismo italiano, de Rossellini a Fellini, de Visconti a Pasolini, verificará que ninguém por ali lê o “New York Times” ou vê a CNN americana. Ninguém sabe dos devaneios neste deserto das almas do europeu Wim Wenders ou do surrealista David Lynch, demasiado intelectuais. Ninguém viu os épicos de Terrence Malick, a tentativa de conferir poesia visual a um mundo parado no tempo, envolto no nevoeiro da dúvida e da identidade, amante de coisas simples, um Deus desconhecido, a família, as armas, a América como nação eleita.

Lembro-me de entrar numa loja do Iowa, uma loja junto a um motel daqueles do fim da estrada da solidão, como nas telas de Hopper, e de ver dois jornais à venda, dois exemplares do velho “New York Times” dos domingos, que pesava um quilo. Só o dos domingos era vendido, e quando perguntei se alguém lhe pegava foi-me respondido que não, nunca. Iam deixar de ter o mono. Quando muito, as pessoas dedilhavam o “USA Today”, gratuito nos hotéis.

Claro que a tropa elitista de Manhattan e os hipsters suburbanos, tal como a tropa da Califórnia, não passa férias no coração do Oklahoma e do Texas, onde só se come carne vermelha e os caniches das senhoras têm laços cor-de-rosa. Hollywood não visita o aço de Pittsburgh ou os campónios da Virgínia Ocidental. Nem Milwaukee ou Cheyenne. Não fazem churrascos aos domingos no quintal e não bebem grades de cerveja ao fim de semana. Não abanam os corpos nos cânticos evangélicos da igreja e do pastor de almas e nunca, nunca, pisam um saloon de música country e danças de cowboys. Nas cidades americanas dois mundos coexistem, duas épocas. O passado e o presente. A par dos que nasceram na economia digital vegetam os que só sabem usar as mãos e nunca estudaram. Que estes dois mundos se encontrem na promessa de um Presidente Trump é o milagre americano.

Na marcha dos direitos civis e da wokeness, os brancos pobres e remediados ficaram atrás dos LGBT e dos negros, uma underclass sem representação. Até os asiáticos e alguns latinos escolhidos foram repescados como dignos de atenção e quotas, mas os rednecks não tinham peões neste xadrez. Ameaçaram retirar-lhes o direito a usar armas e a América elegeu um Presidente negro e, talvez, segundo Trump na primeira estaca política da escalada, um Presidente muçulmano. Talvez estrangeiro. Foi aqui que começou a jornada de Donald J. Na exigência de ver o bilhete de identidade de Barack Obama, onde tinha nascido.

Ninguém prestou atenção, muito menos os liberais, seguros na superioridade das intenções. Nessa América zangada e que soprava as cinzas do 11 de Setembro, essa América que nunca foi a Nova Iorque ou Los Angeles e que foi enviada para combater e morrer no Afeganistão e no Iraque, a pergunta de Trump ressoou.

Não podia durar.

O casal Obama era uma visão diária de tudo o que era repulsivo no mundo bem-pensante dos salões de Washington e dos relvados de Martha’s Vineyard. O “pântano”. Obama foi um lugar-comum. Tudo o que fez depois de sair da Casa Branca foi enriquecer à custa, comprar uma mansão em Washington e outra em Martha’s Vineyard, convidar as celebridades liberais para as festas de verão, o George Clooney do costume, e escrever livros cheios de piedades sobre a ascensão social americana. E receber milhões da Netflix. A mulher, que nunca fez nada na vida, tornou-se um ícone do feminismo e direitos civis, enquanto calçava umas botas Balenciaga de 3000 dólares, cravadas de lantejoulas, para falar ao povo e às outras mulheres. Convencidas de que também elas poderiam casar com o seu Obama. Uma atitude absolutamente trumpista. Estilo sem substância.

A grande ambição liberal desta gente foi emular o clã Kennedy e criar uma dinastia política. Esquecendo que os Kennedys fizeram coisas pela América, de facto, e que deixaram um legado democrata. Ted Kennedy, no meio dos escândalos, foi um dos grandes legisladores e reformadores do Congresso, Bob Kennedy, outro reformador, foi um político assassinado antes do tempo, e mesmo o mitológico JFK evitou uma guerra nuclear não evitando o atoleiro do Vietname. O legado de Obama é o resgate de Wall Street mais a legislação Obamacare, que afundou na burocracia e não chegou para mudar o sistema de saúde americano, refém das seguradoras e das farmacêuticas. O que não foi feito não será feito agora.

Os republicanos organizaram-se atrás de Trump, o seu candidato da Manchúria, o homem que controla os pobres e uma classe média descontente e crédula. O povo MAGA. Triunfante e reforçado pelo apoio do dinheiro americano, o de Wall Street e o de Silicon Valley.

Quando os gigantes da tech, de Peter Thiel a Elon Musk, decidiram que a Casa Branca teria de ser sua, apostaram em Trump. Money, money, money. E no seu homem, J. D. Vance, símbolo do sonho americano, nasce pobre morre rico, e símbolo do sucesso, um ex-marine vindo do mundo difuso do capital de risco e das startups, recusou o cargo de Satya Nadella na Microsoft, sintonizado simultaneamente com a miséria rural dos Apalaches e com o futuro da inteligência artificial. A IA não quer, não precisa e não terá nenhuma regulação política ou institucional. O inimigo é a China e a supremacia tecnológica chinesa, não é uma Rússia envolvida numa guerra congelada, que não ganhará nem perderá, e aguentará. Zelensky já clama por Putin nas negociações de paz, que sempre recusou.

Trump, abençoado e sobrevivo ao atentado, perseguido nos tribunais, sabe que terá o derradeiro mandato. Interessa-lhe mais a marca, sempre interessou, do que a ação. Na verdade, Trump entrou na história americana. Está convencido de que Deus o protegeu. Não Jesus, Deus Ele mesmo. Salvou-o para salvar a América. Donald J. Trump acredita na lenda que criou e nunca recorre a Jesus, que na sua nomenclatura seria um falhado. A loser. Foi apanhado. Como o senador McCain.

A América muda e nessa mudança controla a mudança universal. Imaginar que um partido refém de duas guerras sangrentas e de um Presidente envelhecido conseguirá parar isto é uma fantasia liberal. Como a fantasia, subscrita em inúmeros artigos liberais, de que depois do dia 7 de outubro os palestinianos teriam um país e um Estado independente. Acredite quem quiser.

Mesmo que ganhasse as eleições, Biden estaria condenado à evanescência, a entrar lentamente nessa noite escura. A América mudou. O que vier depois do Trump trauma, um ser falível, humano, será mais invencível do que Trump."

Clara Ferreira Alves, no Expresso


Caminhos Cruzados

O cego vai batendo com a bengala nas pedras que dão forma à calçada bordada no passeio estreito e iluminado pelo radioso sol primaveril. Parece um pouco aflito, confundido, procurando algo que não se acha ali, mas devia, e, nessa ligeira angústia, roda sobre si próprio, ora à esquerda, ora à direita, sem nunca se distanciar demasiado daquele ruído metálico que a calçada devolve.

Do outro lado da rua, um homem atenta no desassossego urgente do cego. Dirige-se a ele.

   - Precisa de alguma coisa?

   - Estou à procura da lavandaria, mas, parece-me que não é por aqui…, a bengala batucando, ágil e certeira, no chão e no rebordo do passeio, soltando notas, compondo sílabas desencontradas.

    - Há aqui uma lavandaria, um pouco mais à frente, eu levo-o até lá, e pega-lhe no braço, suavemente, orientando-o no caminho adiante.

Não chegam a meia-dúzia de passos. O cego sobressalta-se, olhando em frente, atento ao diálogo que arranca do chão a golpes firmes, experimentados. Estaca, teimoso, no passeio, “não, não é por aqui”, enquanto o homem insiste, “está logo ali, a lavandaria, já lhe vejo a porta de entrada”. Mas, o cego não vacila, não duvida, “não é por aqui”, e logo volta atrás, arredio e decidido.

  - Ó amigo, tenha calma. Eu levo-o aonde o senhor precisar de ir. Diga-me, exactamente, que lavandaria é essa, porque, aqui, não conheço outra além desta…

E o cego explicou, apaziguado, confiando no seu instinto e na bondade do homem.

    - Eu saio do autocarro, viro à direita, caminho uns poucos de metros à minha frente, viro novamente à direita e encontro logo a lavandaria…há dois degraus à entrada…

Então, os dois homens voltam atrás, juntos. Retomam o caminho a partir da paragem do autocarro e vão seguindo a memória do cego. A bengala vai à frente, matraqueando, marcando o passo, astuta e ligeira, materializando acordes que apenas o cego pode ler e decifrar.

   - Ah, parece-me que, agora, sim, já vou no caminho certo, alegra-se o cego, estugando o passo. O homem segue-o, expedito, suspenso daquela melodia a que não é totalmente surdo, mas que nunca chega a compreender.

Só mais uns passos, à esquina direita da rua, e, lá está ela, sim, agora vou bem!, a lavandaria com os seus dois degraus à entrada. De fora, não se percebe que há uma lavandaria no interior, porque a loja tem várias secções. O cego conhece-a bem, o homem nunca antes havia reparado nela.

  - Obrigado!

  - Ora essa…boa tarde!

E o homem volta à sua rotina, uma admiração alegre e prazenteira estampada no rosto.






Era Outra Vez na América

Os mais histéricos apoiantes de Donald Trump – como Marjorie Taylor Greene – acusam os meios de comunicação social e o partido Democrata de promoveram o atentado contra o mestre. É absurdamente anedótico. Donald Trump nunca fez outra coisa que não fosse incitar à violência e ao ódio mais primário contra todos os que lhe recusaram, e recusam, o beija-mão. Escarneceu do ataque sofrido pelo marido de Nancy Pelosi, usou e abusou do insulto e do vil escárnio contra vários dos seus opositores políticos – “crazy Nancy, Sleepy Joe” –, ridicularizou as limitações físicas de um jornalista do New York Times, insinuou que as pessoas da segunda emenda pudessem fazer qualquer coisa para deter a sua então adversária Hillary Clinton: se há um responsável pela degradação do discurso que conduziu àquele acto dramático é o próprio. Se o alvo tivesse sido Joe Biden, Trump teria ensaiado uma qualquer piada despudorada sobre a incompetência do atirador, sob o aplauso alarve dos seus vassalos. É um homem desprezível sob qualquer ponto de vista. Não há qualquer equivalência moral entre aquela criatura e Joe Biden, coisa de uma clareza evidente e absoluta para qualquer pessoa dotada de um mínimo de decência. Deveria ser suficiente, e, no entanto, é de uma ingenuidade confrangedora pensar que seria suficiente, estando em causa a presidência dos Estados Unidos da América em tempos de Apocalipse. É aterrador pensar no que aí vem, seja um segundo mandato de Trump, seja uma segunda vitória de Biden, porque Trump jamais a aceitará. Jamais. E, desta vez, não haverá um Mike Pence para estancar a raiva.

Como não é meu o hábito de rezar, vou, pelo menos, tentar manter-me de dedos cruzados até Novembro.


terça-feira, 16 de julho de 2024


Gostas mais de escritores vivos ou de escritores mortos?

Não sei se sei responder a isto. Todos os escritores e escritoras de que gosto estão vivos, só permito que me morram os escritores maus. Quando (é) preciso, resgato-os do Inferno. O Céu não albergará bons escritores, suponho que seja impossível esconder de Deus omnisciente a pequena semente de corrupção que habita os lugares mais sombrios da alma de todos os que são capazes de deixar o subconsciente sangrar em tudo o que fazem.

Ainda não sei bem qual é o lugar de Benjamín Labatut, na sua escrita caleidoscópica, mas o seu MANIAC também é isso, maníaco, depressivo, obsessivo, intencionalmente provocador, Mathematical Analyzer Numerical Integrator and Automatic Computer mas não só. Entender, agarrar, racionalizar. Construir, destruir. Enlouquecer.




domingo, 14 de julho de 2024

Teatros




De todas as características que fazem de um bom actor de teatro um bom actor de teatro há duas que me seduzem mais do que todas as outras: a voz e a expressão corporal. Dos principais actores de “Um Eléctrico Chamado Desejo”, que o grupo “Primeiros Sintomas” levou ao palco pela mão de Bruno Bravo, é Joana Santos a que melhor combina as duas, embora apenas Sandra Faleiro pudesse estar ali na pele da deslumbrante Blanche DuBois; da mesma forma que Nuno Nunes encaixa perfeitamente, corporalmente, num Stanley Kowalski rude, violento e primário, mas cuja voz nunca foi capaz de me convencer, ao longo das três horas que dura a peça baseada naquela outra de Tennessee Williams.

Gostei bastante, no geral. Se não fosse pelo cartaz na parede – mais do que pelo GPS, que já por mais de uma vez me enganou –, jamais diria que ali, no ventre de um prédio desengraçado até na cor, na rua de Santa Engrácia, existia uma pequena sala de teatro. Nunca tinha lá estado.

Foi à saída, à procura de um lugar onde se pudéssemos comer fora de horas (lá acabámos no de sempre), que ficámos a saber do atentado contra (a orelha de) Donald Trump.

A Democracia tem várias fraquezas, uma das quais – provavelmente, a que acabará por ditar a sua morte, neste mundo bizarro onde encalhámos – obriga a lamentar a violência daquele acto e a condescender no júbilo: Donald Trump sobreviveu a uma tentativa de assassinato – o que seria se não, o que será a partir daqui. Os EUA estão sentados sobre um barril de pólvora, e Joe Biden não pode competir com fénix renascida das cinzas.

(ainda não alinho em teorias da conspiração, também sou obrigada a reconhecer uma certa coragem naquele punho erguido)


quarta-feira, 10 de julho de 2024

 



(e Putin não merece a Rússia)

A doutora não comece, já teve os seus dias de sombra e frio e chuva, agora é a nossa vez, dos que gostamos de sol e praia e calor e mar.

Tudo verdade, tem razão. E eu também gosto de sol e de mar, só não gosto da mesma forma. E, sim, se pudesse, prolongava estas manhãs de neblina, o ar húmido de seda translúcida e pérolas de orvalho e o odor salgado a maresia que se prende nos lábios, na pele, sem a urgência ardente do sol alto de Verão. 


sexta-feira, 5 de julho de 2024

"A Gaffe Inquirida" - Tão Bom


Não sei se estamos a pensar na mesma Amiga, mas há, pelo menos, um pequeno caso que eu gostava muito de voltar a ler.

Sabes que eu tampouco gosto de ostras? Na verdade, nunca as provei; e enquanto me lembrar disto nem me atrevo. Deves ter conseguido que um ror de gente deixe de provar ostras nos tempos mais próximos.

Nunca bati em ninguém, ao contrário da minha irmã, que, uma vez, assentou um murro nos queixos de um tipo pela enésima piada estafada sobre loiras – muito menos interessantes do que aquelas sobre ruivas, é um facto, coisa, aliás, que tem muito menos que ver com as piadas, como aqui se comprova facilmente.

A propósito, por motivos que não vêm ao caso, acabo de esbarrar num documento sobre a gastronomia do Alentejo, coisa de ir às lágrimas, de gula. Melhor: não há ostras.


Muito bom!


quinta-feira, 4 de julho de 2024


São dias de saudade imperfeita. Vão de versos estilhaçados, tombando sombrios, lâminas afiadas sobre os véus do desgosto. Labirintos de veludo escarlate de paixão e cólera, que lavram febris na vertigem da perda.

Invento o impossível.

Sob o manto diáfano da luz de esmeril, ambarino, descendo sobre as encostas sulcadas do monte, velando o rio que jaz na profundeza estreita do vale. Beber a ausência ao limite da embriaguez, da nudez bruta dos sentidos.

Um hálito de fantasma aflorando breve a linha suave do meu ombro.


Isto também é sobre encontros felizes


Há um lugar sombrio em todas as almas, sim, também o sinto, também o temo.

Sabes, querida Gaffe, que considero um sacrilégio a generosidade que emprestas a este sítio. Tu, um dos meus mais preciosos exemplos da arte de bem pensar e de bem escrever.

É tão bom ter-te de volta, já te disse que é tão bom ter-te de volta?



E se Michelle Obama...

Quando Joe Biden reapareceu como possível candidato do partido Democrata para um segundo mandato na presidência dos EUA, disse, por piada, que Michelle Obama, sim, daria uma boa candidata contra Trump (depois de um exagerado o quê?!, mas aquela gente é doida?, ou qualquer coisa assim). Ainda nos rimos muito cá em casa, mas foi numa época em que se falava, até, da Oprah, pelo que era uma tolice perfeitamente aceitável. De repente (não sei se de repente, não acompanho tão intimamente os meandros da política americana), o nome de Michelle Obama começou a surgir um pouco por todo o lado. Carmo Afonso (entretanto, dispensada pelo PÚBLICO, dizem que por razões obscuras) foi uma das pessoas que escreveu sobre o assunto, e, agora, o Expresso refere uma sondagem em que a antiga primeira-dama surge como a única “alternativa a Biden que venceria Trump”. E é mesmo capaz de ser a única alternativa a Trump. Vejo-a capaz como poucos – como poucas, no caso – de não se deixar intimidar por aquele modo grosseiro e desdenhoso. Não faço ideia da sua competência ou não para governar um país como aquele, ou outro que fosse, mas há muito que a escolha deixou de ser feita sobre tão elevados parâmetros. 


O meu rico fato Ralph Lauren...

A mente detém-se nos detalhes mais bizarros nos momentos mais insólitos. A minha, seguramente. A de Salman Rushdie afligiu-se com a mutilação do seu rico fato Ralph Lauren, enquanto o próprio se esvaía em sangue no chão de um anfiteatro em Chautauqua, esfaqueado por um tipo que não gostava dele: um par de páginas da obra do escritor, umas palestras no YouTube, Rushdie era insincero, concluiu, logo, merecia morrer. Não morreu. O atacante chama-se Hadi Matar, outro extraordinário detalhe, pelo menos, para quem lê português.

Um dos médicos terá dito a Salman Rushdie que a sua sorte fora a ignorância do agressor sobre como matar um homem com uma faca. “Faca, Meditações na Sequência de uma Tentativa de Homicídio” lê-se numa tarde, e eu tinha alguma curiosidade. Não é fabuloso, penso que nem o pretende – talvez seja apenas a última etapa para a cura absoluta, o derradeiro passo para a reconciliação. Há violência, claro, o relato cru do ataque e dos diferentes estágios da recuperação dolorosa e lenta; há a história de amor do seu actual matrimónio; e há momentos de humor, vários, às vezes negro. A., como Rushdie vai chamando ao seu agressor ao longo do livro, esfaqueou-o 15 vezes durante 27 segundos, o tempo de ler o soneto nº 130 de Shakespeare, o seu preferido. Seu, de Rushdie, claro, A. nem deve saber o que é um soneto. Na entrevista ao escritor no programa 60 minutos Anderson Cooper liga o cronómetro do telemóvel para contar 27 segundos de silêncio críptico, e é realmente perturbador.

Em Janeiro de 1938, fiquei também a saber, Samuel Beckett também foi atacado e esfaqueado. Por que o fez?, perguntou ao agressor: “Je ne sais pas, monsieur, je m’excuse”. Sempre encarei o ódio como um sentimento denso, profundamente envelhecido como um néctar, quase nobre, embora apenas no sentido oposto ao da leviandade, e tão difícil de assumir como o Amor. Mas talvez não. Talvez haja quem possa, simplesmente, amar e odiar sem volúpia, que sei eu, que não odeio ninguém?


terça-feira, 2 de julho de 2024




 

André Ventura tem o instinto político de um abutre. O apelo à manifestação das forças policiais junto ao Parlamento, e nas galerias do Parlamento, na data em que será votada a proposta do seu partido para o aumento do subsídio de risco para a PSP e GNR tem o travo da decomposição onde medra o animalismo do Chega. Claro que é um apelo à desordem, uma pensada e propositada tentativa de intimidação. Há quem não veja nisto mal algum, é a democracia a funcionar, encalhados que estamos entre um pensamento único de esquerda e um pensamento único de direita. Salvé os que pensam pela própria cabeça, desde que a cabeça desses pense o mesmíssimo que a nossa. O que não se pode é considerar que há inadmissíveis de ambos os lados do abismo. Julgar, por exemplo, que este artigo roça o injurioso até no título, mesmo rejeitando aquela exaltação culposa, permanente, do nosso passado racista e colonizador; repudiar a violência abjecta do Hamas e criticar a orgia de destruição e morte com que a Israel de Netanyahu pretende legitimar o seu direito à defesa, e Israel tem direito à sua defesa; estar do lado da lei e da ordem e renegar uma justiça que condena uma mulher que mordeu um agente da PSP que a asfixiava, mas não o (ou os) agente da PSP pelo espancamento animalesco dessa mulher, por desobediente – a culpa foi toda sua, evidentemente: não sei se há racismo nisto, mas duvido que haja justiça. 



Menos mal que nos resta o futebol. Não chorei porque não calhou, vá lá uma pessoa entender-se nas desrazões do coração, ou lá o que é. 


segunda-feira, 1 de julho de 2024