segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Nick Cave and the Bad Seeds

 




Em palco, Nick Cave é um homem sem idade. Não se dá pelos seus sessenta e sete anos; como podia ter atravessado vários séculos como um Nosferatu. É imortal. Catártico. Um cantador de histórias, capaz de transformar um concerto com milhares de pessoas numa conversa íntima; um monólogo, muitas vezes. Há uma tensão permanente, tangível, entre a beleza e a dor, a alegria e a tragédia. É um homem exposto.

Warren Ellis é um druida. Podia ter saído das crónicas de Nárnia.


domingo, 27 de outubro de 2024

A modernidade desfez outro prazer antigo: o de atrasar uma hora o relógio mecânico e prolongar o prazer de fazer recuar o tempo. Mesmo que apenas uma vez por ano, e para recuperá-lo à entrada da Primavera. Restam-me os relógios de pulso – ninguém me apanha com uma bugiganga daquelas espertas que mede o humor, as horas de sono que permitem sonhar (desconfio que só tenho das outras), os níveis de stress e quantos passos demos ao fim de um dia. Prefiro o tique-taque compassado, circular, que marca o presente sem alarme. Sabe-me a renovação. Como o sangue que se regenera a cada ciclo. E a ilusão, também: de que posso atrasar-me, resgatar o tempo que me falta para tudo o que não fiz ainda, ler os livros que acumulo, os autores que descubro por feliz acaso. Sem segredo algum…

 

Rodeio-te de nomes, água, fogo, sombra,
vagueio dentro das tuas formas nebulosas.
Como um ladrão aproximo-me entre palavras e nuvens.
Não te encontrei ainda. Falo dentro do teu ouvido?
Entre pedras lentas, oiço o silêncio da água.

A obscuridade nasce. Tens tu um corpo de água
ou és o fogo azul das casas silenciosas?
Não te habito, não sou o teu lugar, talvez não sejas nada
ou és a evidência rápida, inacessível,
que sem rastro se perde no silêncio do silêncio.

O que és não és, não há segredo algum.
Selvagem e suave, entre miséria e música,
o coração por vezes nasce. As luzes acendem-se na margem.
Estou no interior da árvore, entre negros insectos.
Sinto o pulsar da terra no seu obscuro esplendor.”

 

António Ramos Rosa


É para ti. Pelas saudades que tenho de ti.


 

"On croit que, lorsqu'une chose finit, une autre recommence tout de suite. Non. Entre les deux, c'est la pagaille."

Marguerite Duras, Hiroshima Meu Amor


sábado, 26 de outubro de 2024





Saturno Devorando o Filho (pormenor), Francisco de Goya

Não posso escrever aqui tudo o que se me oferece dizer sobre o líder parlamentar daquele bando de imprestáveis que constitui a claque de André Ventura lá na Assembleia da nossa República. Representam (ainda?) um milhão e não sei quê de nós, já sei, mas falta-me a caridade cristã que manda amar o próximo como a mim mesma, e sobra-me a arrogância de me considerar suficientemente dissemelhante daquela mole bafienta de gente de bem. Não me servem nem para odiar, porque o ódio é coisa quase nobre, primordial, não esta banalização pornográfica, a perseguição canalha que os faz salivar como cães de Pavlov cada vez que cheira a desgraça. Não. O meu ódio é da intensidade trágica das paixões dos grandes clássicos da literatura, extenuante, espelho sombrio do amor e igualmente denso; muito diferente deste ódio raso, ruminante.   





 

"Musk, o cavalo de Troia"


Luís Pedro Nunes, EXPRESSO

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Há momentos em que a adoro.

 

"Tenho sobre Coppola um direito proprietário. Vi os filmes todos, mais de uma vez. E considero sem apelo que apenas três génios transcenderam a cansada designação de sétima arte. Charles Chaplin, Orson Welles e Francis Ford Coppola. O direito proprietário deriva do facto de ter uma vez tomado uma decisão crucial da minha vida à saída de “Drácula”. Estava em Times Square, numa daquelas grandes salas americanas cheias de néons, com ecrãs gigantes, numa altura em que na Europa ainda não havia ecrãs gigantes.

“Drácula”, um filme mal-amado numa fase em que Coppola era crucificado, e estava mais ou menos arruinado para variar, é uma obra-prima mal compreendida. Uma herança do Romantismo numa época realista e naturalista que desdenha esse passado e recusa o artifício e o sobrenatural. A realidade não chega para explicar o mundo. O filme tem uma das grandes interpretações de Gary Oldman, por vezes considerado o maior ator vivo. O problema quando se escreve sobre Coppola é o de destruir o valor dos adjetivos hiperbólicos e cair na redundância do elogio. O homem é maior do que a vida.

Nessa noite em Times Square, tive uma terminal discussão sobre “Drácula”. Eu a favor, o outro contra. Os argumentos alinhavam-se do lado contrário. Barroco, excessivo, gratuito, uma ópera mal conduzida por um encenador que destruía a história e o mito de Bram Stoker, reduzindo o vampiro a uma personagem grotescamente vulnerável. Separámo-nos, em mortal incompatibilidade. Prossegui na minha admiração por Coppola. Há pouco tempo fui rever “One From the Heart”, saí da sala a esvoaçar.

“Megalopolis”. Coppola passou anos a dedicar-se à hotelaria e aos vinhedos de Napa Valley para, aos 85 anos, realizar o sonho do filme. E financiá-lo. Orson Welles, no fim da vida, fazia anúncios para ganhar dinheiro para “The Other Side of the Wind”, megalomania inacabada. Welles morreu meio de desgosto, como me contou Barbara Leaming, a biógrafa que mais próxima esteve dele no fim. Quando ia a Nova Iorque, jantava com ela e o marido, um professor de literatura russa na universidade, amigo de Joseph Brodsky e dos exilados russos que por esse tempo assombravam a baixa de Manhattan, antes da gentrificação, da chegada dos construtores. Da destruição da boémia artística da Village. Os biografados de Leaming são, além de Welles, John F. Kennedy, Winston Churchill, Jacqueline Kennedy Onassis, Marilyn Monroe, Rita Hayworth e Roman Polanski. Podemos dizer que a minha amiga se dedicou à grandeza. Falta neste cartel Francis Ford Coppola. Mundo mega mais do que meta.

“Megalopolis”. As imagens são poderosas, certos planos são o máximo expoente da alucinação, mas o fio narrativo não só é inconsistente como a fragmentação discursiva pode resvalar no lugar-comum. Coisa que o velho Coppola nunca fez. Os monólogos de Shakespeare e os intermezzos romanos e gregos, que descendem da cultura clássica e europeia deste cineasta americano, são uma bengala que sustenta uma ausência de argumento. Ou, diria o pós-modernismo, uma ausência de metanarrativa. Perigo da queda no vazio das palavras, amparada pela literatura.

A implausibilidade não é o problema principal. A implausibilidade nunca foi um problema, embora seja confortável para o espectador. O problema é que a ambição de Coppola é servida pela idade avançada. Os 85 anos são os 85 anos. Sozinho e solitário, Coppola não pediu ajuda para realizar o sonho. Uns anos antes, certas falências narrativas não seriam postas em cena. O que faz ali Hitler?

Além da idade, Coppola esteve muito tempo sem filmar, o que significa que fez o que se faz à saída do túnel da privação, enfiou tudo dentro do filme. Pode resultar num conjunto de vinhetas. O tema é vasto, monstruoso, a decadência do império americano. O filme é uma soma de pedaços desconjuntados, um Frankenstein a vaguear por entre as ruínas do capitalismo triunfal.

“Megalopolis” tem um lado salvífico, o olho da câmara. Que aguenta a narrativa sem narrativa. Antes de atirarem pedras a Coppola, os críticos alimentados a Marvel deveriam pensar como é que os fragmentos deste discurso visual podem aplicar-se ao mundo americano. Um sonho, uma visão, uma utopia que caiu no poço da vulgaridade e da malignidade distópicas. Um império a desmoronar-se, socorrendo-se do orgulho militarista, como escreveu Gore Vidal. Nova Roma servida pelo dinheiro e a idolatria do dinheiro, com visionários que propiciam a corrupção das almas e dos princípios. Que distorcem a realidade até a tornarem um teatro de acusações e traições. E que persistem em salvar-nos do mal, como deuses imperfeitos e sinceros.

Cheguei a casa vinda do cinema, rememorando as imagens, e encontrei Donald Trump junto das batatas fritas. Num qualquer McDonald’s algures nesse território desconjuntado chamado América. Trump, o aprendiz de feiticeiro, o construtor da nova Manhattan, o utilizador do mayor corrupto chamado Giuliani, estava na CNN. Envolvido pelos vapores da máquina fritadeira, de avental, sacudindo o cabelo alaranjado. O aprendiz aprendia a fritar batatas na máquina. Uma vinheta a não perder. Talvez Coppola tenha razão. Talvez a América, como “Megalopolis”, já não faça sentido.

A outra vinheta é a de um Elon Musk despenteado, aos pulos, na descoberta da emoção política e do amor da plebe, oferecendo um cheque de um milhão de dólares a qualquer grupo de gente na Pensilvânia que convencesse outro grupo de gente a votar em Trump. Sendo a Pensilvânia um dos estados da chamada indecisão, Musk faz o que sabe fazer além da engenharia do futuro. Atirar dinheiro para cima do problema. Musk é um Coriolano, e se assim continuar transformar-se-á num protofascista, o ponto em que passará a odiar a plebe depois de a amar.

Estas duas vinhetas reabilitam Coppola, ou a visão deformada de Coppola. “Trump manages fry station”, a linguagem no original, em rodapé, não será mais implausível e irreal do que os diálogos de “Megalopolis”? Trump insultando Harris e chamando-lhe shit president não será apenas uma extensão da hiper-realidade da Nova Roma em Nova Iorque? Coppola percebeu a falácia imperial. A intuição está absolutamente certa. A linguagem atual dos protagonistas é menos distinta do que a do filme.

O anacronismo da idade leva o génio a apoderar-se de dois símbolos do bezerro de oiro que deixaram de o ser. Não são os banqueiros nem os construtores que rasgam o tecido do império. São personagens como Musk, os plutocratas da tecnologia, são os visionários de mágicas colonizações do tempo pelos homens-máquinas que eles inventam, oferecendo à plebe o vício da gratificação imediata. Os plutocratas da inteligência artificial estão a ressuscitar as centrais nucleares desativadas para alimentarem a fome de energia e ninguém diz uma palavra. A plebe anestesiada não resiste nem pensa, consome, admira, elege.

Isto, Coppola, que é do século XX, não podia transferir para o cinema. É demasiado tarde. Não teve tempo de estudar o admirável mundo novo, a opacidade, o segredo, a complexidade algorítmica, e recorreu aos banqueiros e construtores como arquitetos da impiedade. São categorias obsoletas. O algoritmo é mais opressivo do que o megalon.

A visão está certa. “Megalopolis”, na formidável desconjunção, acerta no diagnóstico. O vilão, personagem central do drama humano, continua igual através dos séculos. Na tragédia de Shakespeare ostentava uma grandeza que o vilão do século XXI, atolado na lama da corrupção, não pode ostentar. Trump ou Musk nunca serão Macbeth.

A proximidade da morte levou Francis Ford Coppola a trocar o final trágico desta ópera por um final feliz, ou quase feliz. Pelo menos, otimista. Um futuro radioso para a espécie destruidora de mundos. Um futuro altamente improvável. César e Catilina, duas referências históricas não complementares, vivem em Adam Driver sem contradição. Os atores apreciam a grandeza. César foi César, Catilina foi um conspirador que viveu da violência e que pela violência foi aniquilado. César foi o construtor do império sobre as ruínas da república romana e foi assassinado nos Idos de Março. Cícero, na Roma Antiga, suprimiu a conspiração de Catilina executando conspiradores sem julgamento para salvar a república. Públio Clódio Pulcro foi o tribuno da plebe, um dos inimigos de Cícero. As mulheres de “Megalopolis” são um veículo passivo das paixões dominantes. E aparece uma espécie de Taylor Swift, a vestal. É genial, fica dito.

Em “Megalopolis”, Coppola não cuida da veracidade histórica, distribui os nomes, cria as próprias referências retiradas de uma cultura literária e histórica enciclopédicas. Uma cultura que deixou de existir, como prova a cegueira dos críticos que deixaram escapar múltiplas referências. A ignorância gera a incompreensão.

O mundo em que vivemos não é o de Francis Ford Coppola, é pior. É real."

Clara Ferreira Alves, EXPRESSO

 

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Marco Paulo

Cresci num bairro social. Os meus pais – a quem devo tudo o que sou e adoro mais do que sei expressar – empenharam-se sempre em que nunca nos faltasse o essencial, a mim e à minha irmã. Pudemos estudar, escolher uma carreira, um caminho que, para eles, não foi possível; mas, para nós, o tal elevador social funcionou. Devia ser assim.

Durante muitos anos, tivemos um grupo de amigos com quem saíamos uma vez por ano, no Verão, para um fim-de-semana prolongado: era o que chamávamos as nossas férias. Muitos desses amigos já faleceram, eram todos mais velhos que os meus pais, e guardo recordações maravilhosas desses tempos de menina. 

Havia poucas crianças. Eu e a minha irmã, sempre as mais novas do grupo, passávamos o ano a organizar um reportório de canções populares e a ensaiar para – não acredito que vou escrever isto – cantarmos durante essas viagens, que fazíamos num daqueles autocarros de excursão. O que começou com uma brincadeira transformou-se em programa obrigatório. Cumpríamo-lo com imensa alegria, divertíamo-nos imenso com aquilo. É claro que nunca faltavam canções de Marco Paulo. Ainda sei de cor uma data delas.

Em memória dos bons velhos tempos, para os presentes e para os ausentes,





quarta-feira, 23 de outubro de 2024

 

Il faut éviter de penser à ces difficultés que présente le monde, quelquefois. Sans ça, il deviendrait tout à fait irrespirable


Marguerite Duras


terça-feira, 22 de outubro de 2024

Os cachinhos do cabelo tremem-lhe como molas pendulares, ao ritmo da birra que o faz espernear deitado no chão do supermercado. Um miúdo daqueles a quem faltam muitos banhos de água fria, vê-se logo. O meu filho fez-me uma parecida, uma vez única: enfiei-o imediatamente numa banheira… mentira. Veio uma velha atrás mim, de carro, enquanto eu ainda lutava para enfiar o puto na maxi-coisa do meu: mas o que é que está a fazer ao menino, vou já aí, como se eu estivesse a estrangulá-lo. E veio. Deu a volta com o carro para saber, afinal, que mal fazia eu à pobre criança. Trazia sempre rebuçados no bolso, para os netos (dos outros também, evidentemente), e enfiou-se-me no carro, determinada a calar-me o menino a bem. Estive tentada a puxar-lhe o cabelo branco imaculado, mas estava exausta. O meu filho calou-se, eu tirei-lhe os rebuçados e a velha foi-se embora, a resmungar não sei o quê.

Adiante.

A irmã (parece uma irmã) do pequeno ditador segura-o pela mão, enquanto o arrasta pelo chão, mas o diabrete resiste. Quando a irmã desiste e lhe solta a mão minúscula, a fera levanta-se de um salto e corre para a secção dos brinquedos. Não é aqui!, não é aqui!, ouço-o gritar lá do fundo, com o cabelo aos saltinhos, a preparar nova investida.


Megalópolis

Ainda não estou preparada para dizer mal. Não achei péssimo nem fantástico.

É interessante e demasiado, belo e cacofónico, infantil e subtil, crítico e cómico, exuberante e trágico nem sempre no mesmo sentido da genialidade de William Shakespeare, apesar das citações e das poses artificialmente, propositadamente, teatrais e dramáticas.

Desarmonioso.

O que eu acho mesmo é que há um grau de loucura ao alcance de poucos – pelos menos, em estado sóbrio – que às vezes invejo. Anormalidade em estado puro.





 

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

"na realidade, sou um realizador de segunda. Mas, como realizador de segunda, sou de primeira."


Por acaso discordo. É mesmo um realizador de primeira. Apocalypse Now – que também eu já vi várias vezes, e nunca deixa de me apunhalar e surpreender – teria bastado. Impressionante. "Ouvir o filme. É o filme que nos diz como é que se faz". É exactamente o que ali transparece. Esquizofrénico. Absurdo. Requer uma certa coragem falar dos nossos próprios campos de batalha, aceitar que o Mal é algo profundamente humano.

Tão boa, esta entrevista de Francis Ford Coppola ao Ípsilon.


"Week in Wildlife"

 



Fotografia: Jeroen Hoekendijk

"A sperm whale in the Azores, photographed by Jeroen Hoekendijk, who spent a week on the archipelago capturing the abundance of marine life there. “This sub-adult female, about 10 metres long, hung beneath the clear surface of the water,” says Hoekendijk. “It almost looked like a chlorinated swimming pool – except that it was 1km deep.”"





Fotografia: Harish Tyagi/EPA


Marginal

Sei que posso ser muito ingénua, mas há sempre pior. Por exemplo: os que acreditavam piamente que Pedro Nuno Santos ia “analisar”, “ponderar” e decidir “responsavelmente” viabilizar ou não viabilizar a proposta de Orçamento de Estado do Governo de Luís Montenegro, há uma semana, quando era evidente desde a noite em que assumiu estoicamente a derrota que o líder do PS não confiava nada naquele “não é não”. Creio que a pressa vinha daí: uma vitória curtíssima da AD mais uma subida estrondosa do Chega igual a aqueles tipos vão ter mesmo de se entender, e eu posso lavar as mãos como Pilatos.

Luís Montenegro não será o estratega brilhante que levou a sua vontade a bom porto contando com a impetuosidade suicida do enfant cada vez menos terrible: soube esperar, arriscou, e, a dada altura, os astros alinharam-se. No dia em que anunciou ao país as alterações ao Orçamento de Estado para ir ao encontro das exigências do PS, ainda deglutia um pequeno sapo; muito longe do sorriso quase escarninho de ontem. Esperou, desejou, conseguiu, diria o senhor presidente. Esteve muito bem.

Podíamos, agora, parar por aqui no quem é que humilha quem, mas o povo gosta de sangue e a comunicação social faz as exéquias com indisfarçável gula. Nem falo das outras “forças políticas”, porque não há nenhuma realmente interessada em discutir soluções; AD incluída. É uma guerrinha de bastidores, ataques pessoais, mediocridade ao mais alto nível.

Ontem assinalou-se o Dia Internacional da Erradicação da Pobreza. Portugal tem mais de dois milhões de pobres. Mesmo entre os que trabalham a tempo inteiro, há quem trabalhe apenas para pagar contas. Será assim tão difícil encontrar pontos comuns para acomodar uma discussão séria sobre isto? Pergunta a parte ingénua de mim.


quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Nesta margem, a avenida é limpa e o bairro é chique. Há um leve cheiro a jasmim, e edifícios elegantes e esterilizados do outro lado da rua. Observo-os, perdida por detrás da lente da minha máquina fotográfica. Os outros seguem mais à frente. Os miúdos riem e falam de coisas que, à distância, apenas adivinho. É espantoso, o tanto que têm para conversar, juntos as quase 24 horas dos dias de férias.

As árvores balançam com graça os seus ramos esguios, derramando, sobre o chão escaldante, sombras negras, irrequietas, que logo escoam céleres pelos sumidouros rendilhados que o sol torna mais brilhantes.

Vou distraída. Demoro um pouco a perceber que o homem se dirige a mim, em passo largo. Um passo largo. Nem vi de onde veio, materializou-se diante de mim, moreno de cabelo curto e negro, fardado; parece-se com um segurança. Levanta a mão sem me tocar, não lhe entendo uma única palavra, mas sei que me manda parar. Percebo, intuitivamente, que fiz algo que não devia. Uma fotografia. Aponta para a minha máquina e mantém-me refém de uma suposta autoridade que me confunde. Continua no meu caminho, impassível, e sinto o calor apertar-me mais. Os outros, lá adiante, parecem distraídos. Não tarda, escapam-se à esquina da rua e deixarei de os ver. Amaldiçoo-me por me ter deixado ficar tão para trás, eu e os meus malditos instantes. Irrepetíveis, urgentes. Inadiáveis.

Continuo a encarar o homem na minha frente. Estou agora certa de que se trata de um problema com alguma ou algumas das minhas fotografias. Mostro o écran da máquina e pergunto se devo apagar alguma coisa – não desconfio o quê –, imaginando que me faço entender de algum modo. Segura na mão um walkie-talkie obsoleto que aproxima do rosto enquanto olha para mim. Fala com alguém, e é evidente que aguarda instruções. A esquina está cada vez mais próxima, mas não quero chamar. Receio elevar demasiado a voz, denunciar-me na aflição tonta que me agonia. O riso das crianças chega-me já encolhido, pálido, e o calor também me ameaça.

Perco-me por momentos, entre as sombras e os cantos do tempo, até o homem começar a chamar-me, uma cacofonia insistente e confusa. Acaba por tocar-me no braço, à altura do cotovelo, leve, mais suavemente do que sugere o enorme chinfrim em que pretende que eu o entenda. Mas compreendo que posso ir, afinal, com a minha máquina e as minhas fotografias intactas. Num devaneio inútil, desejo, intimamente, poder entender e fazer-me entender todas as línguas do mundo.

Acabam de chegar à esquina quando se voltam, finalmente, para trás. Mas já está tudo bem. Volto a escutar as gargalhadas cristalinas, inocentes e alegres como antes.


quarta-feira, 16 de outubro de 2024




 

Perturbador

Há dias em que me deixo maravilhar pelo fenómeno Trump. O ex e parece que inevitavelmente próximo presidente dos Estados Unidos da América continua a acreditar (ou a fingir: para o caso e para a causa, é indiferente) que lhe roubaram a eleição de 2020; instigou os seus apoiantes à insurreição; não se demarcou dos cânticos que apelaram ao enforcamento de Mike Pence; promete perseguir e mandar prender opositores políticos; propõe um dia de purga, uma hora, vá, one really rough hour, para que a polícia possa fazer o seu trabalho livre de pressões políticas – que é como quem diz o que toda a gente suspeita –; incita permanentemente ao ódio, não só contra imigrantes, mas contra todos os que ousam dizer-lhe não; alimenta teorias conspiratórias que passam, agora, pela manipulação de fenómenos meteorológicos – de “semear” nuvens para produzir localmente chuva em regiões afectadas por secas, coisa possível, à criação de furacões obedientes, guiados como mísseis para atingirem deliberadamente estados republicanos. E, no entanto, surge como o candidato inabalável, imbatível. Intriga-me. Estúpidos ou não, não é (apenas) economia: diz quem sabe, a economia não está pior sob a administração Biden, antes pelo contrário.

Nada disto é novo, no entanto. Só nunca tinha sido omnipresente, creio.

Donald Trump emergiu como figura política altamente, visceralmente, polarizadora, para se transformar num fenómeno cultural e sociológico de quase culto. O quase é para não deixar morrer a (minha) esperança. 

Há os seus apoiantes incondicionais, capazes de embarcar em qualquer uma das realidades alternativas que o guru lança como pregões sobre a multidão em transe. O herói anti-sistema, um enviado de Deus, se não mesmo o próprio. Depois, há os cínicos. Não se sentariam à mesa para jantar com um patife daqueles, um narcisista sinistramente irritante, mas vêem em Donald Trump um veículo eficaz para aplicar a sua própria agenda; não destruir, mas moldar o tal sistema à imagem dos seus interesses, manobrando nos bastidores enquanto o show se desenrola, entretendo as massas. Será Donald Trump um político astuto ou um joguete nas mãos de vilãos mais poderosos? A História há-de mostrar, mesmo condenada a nunca ensinar.

Donald Trump tem esse carisma autoritário, repugnante, sociopata, que há-de alimentar sempre o fascínio pela transgressão, a ilusão de segurança pela força bruta, olho por olho, dente por dente, a coragem de romper convenções. E o espectáculo. A política americana sempre viveu do espectáculo. A democracia americana e a sua sociedade civil aguentarão melhor um segundo mandato de Trump ou uma nova derrota do republicano, desta vez para uma mulher que ele despreza (como, de resto, desprezará todos os que fazem questão de deixar claro que não estão para o adorar e servir)? Pacificamente, Donald Trump parece ser incapaz de aceitar até a própria vitória.  


terça-feira, 15 de outubro de 2024




 
Para ouvir à chuva morna que se vê daqui.

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

André Ventura só tem uma palavra: uma diferente a cada intervenção pública.

Não ponho as mãos no fogo por Luís Montenegro (tinha boa impressão de Carlos Moedas e bastou-lhe a Câmara Municipal de Lisboa para a pose de pequeno imperador, ou seja, não percebo nada disto, se dúvidas houvesse), mas desconfio mais da abnegação do líder do Chega: o primeiro-ministro promete-lhe a cenoura que ele deseja e persegue desde Março e Ventura declina saciar a fome que o consome noite e dia. Pois. E não chamem “extrema-direita” àquela turma de patetas que compõem a bancada do Chega, é preciso um pouco mais do que vestir-lhe(s) a pele. Nem para cata-ventos, que esses ainda têm préstimo.


quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Wildlife Photographer of the Year


 



Há anos que um amigo me avisa: vivemos (a caminho do pretérito imperfeito...) em paz há demasiado tempo. Aqui, no admirável mundo ocidental, convencidos da nossa superioridade moral, social, cultural e tal, tão embevecidos com a rotina e a ordem democrática que amolecemos no embuste embalado da normalidade, da igualdade, da unidade, e por aí adiante, mas pouco, para não sair da linha. Estamos nessa zona de interesse. O abismo é mesmo ali ao lado, mas escolhemos não ver. Ou escolhíamos, não sei. Portugal parece tão distante dos Infernos mais próximos que podemos manter os olhos fechados por mais algum tempo, brincar aos orçamentos, anani-ananão, cedes-tu-eu-não, ignorar a falência do Estado, porque, afinal, apesar de tudo e do resto do mundo, vivemos num cantinho do céu, diz a dona Berta da confeitaria.

Cumpriu-se um ano sobre o ataque infame do Hamas. O horror do 7 de Outubro tornou-se no elixir da impunidade de Benjamin Netanyahu e do seu implacável exército. Dizem que não sabe nada de História quem se atreve a questionar o modo e o método da “legítima defesa” de Israel. Ignorantes ou anti-semitas. Não há espaço para olhar aquela orgia de morte e destruição e questionar. Se os palestinanos abandonassem as armas haveria paz, se Israel abandonasse as armas, não haveria Israel, como é que insistimos em complicar? 

O Hamas e o Hezbollah são organizações terroristas, políticas ou não, assumidamente empenhadas em destruir Israel e a causa palestiniana deve ser a última das suas preocupações (tal como os reféns israelitas para Netanyahu), mas dificilmente terão capacidade para tal, mesmo com o apoio do Irão. Israel é uma potência militar significativa, com um exército moderno, eficaz, um sistema de defesa avançado e possui considerável apoio internacional. Não é um Estado em risco de desaparecer. Não pela via militar. 

Mesmo que não se lamente (e eu não lamento) a morte dos responsáveis pela barbárie de há um ano, ou a extinção de regimes como o do Irão, onde mulheres sob custódia policial podem ser assassinadas por não cobrirem devidamente o cabelo, a solução não pode passar pelo extermínio de populações inteiras e pela destruição completa da terra, que ambos, judeus e palestinianos reclamam como sua com base em razões e argumentos históricos e religiosos que assistem às duas partes. É uma carnificina sem fim, alimentada pela vingança, mais do que pelo direito à defesa, e por uma embriaguez de guerra capaz de amputar qualquer resto de humanidade. Se há exército e inteligência capazes de ataques cirúrgicos aos seus inimigos é Israel, pelo que, quanto de História é preciso saber ou lembrar para rejeitar a perseguição predatória de um povo?

Vale-me o Outono. A transmutação lenta das cores na sua vaidade decadente; a luz dourada emoldurando aquele grupo de gaivotas que repousam no telhado em frente. E os meus livros. Não há vida sem livros. Talvez o céu se pareça com isto, dona Berta.


sábado, 5 de outubro de 2024