terça-feira, 24 de dezembro de 2024

 




Pedi ao ChatGPT para me criar um cartão de Boas Festas. Não ficou grande coisa, porque é preciso saber pedir, e, evidentemente, falta-me o jeito. À terceira tentativa, esgotei a gratuitidade da generosidade artificial e saiu aquilo. Mas não ficou péssimo, e sempre posso compensar com a genuinidade da minha mensagem: um Bom Natal a todos os que passam por aqui, até para quem não é de Natal. Para mim, este é, essencialmente, um tempo de estar, um tempo de afecto, de abraços, de bem-querer – são esses os meus votos para quem aqui vier.


quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Não gosto de andar de avião. Não deixo de viajar por andar de avião, mas não gosto de andar de avião. Adopto e adapto estratégias – algumas quase infantis – para iludir o desassossego da viagem, juro furiosamente que não tenho medo, e, sempre que as condições mo permitem, leio. Tenho uma certa inveja daquela gente que lê em qualquer lugar, um qualquer número de páginas, numa brecha mínima de tempo: não imagino os meus dias sem livros, mas não leio na praia, não leio em filas para coisa nenhuma, não leio na cama e o avião é o único meio de transporte onde posso tentar a leitura – de carro ou de comboio enjoo às primeiras linhas. Manias. Também não tomo café em copos de plástico, nem vinho em copos sem pé – já contei.

A última viagem de avião foi longa e perfeita. Pude ler, e li “O Meças”, de José Rentes de Carvalho. De uma honestidade brutal e crua. Como sempre. Uma lâmina afiada, que penetra fundo e sem concessões na alma de um Portugal esquecido, à margem do progresso, rural. Talvez até já inexistente, não sei, como tantos outros portuguais esquartejados pelo autor, suponho que entre o fascínio e a repulsa, como ali se lê. Ou eu li. Parece simples (há quem lhe chame hiperliteratura), mas não é.


terça-feira, 17 de dezembro de 2024

“O que me inebriou quando voltei a Paris, em setembro de 1929, foi, em primeiro lugar, a minha liberdade. Sonhara com ela desde a infância, quando brincava “às senhoras” com a minha irmã. Já contei como esperava apaixonadamente por ela, quando estudante. Subitamente, tinha-a ao meu alcance; a cada gesto, espantava-me com a minha disponibilidade. De manhã, mal abria os olhos, entrava em grande agitação, rejubilava. Por volta dos meus doze anos, sofri por não ter em casa um cantinho meu. Ao ler no Mon Journal a história de uma colegial inglesa, tinha contemplado com nostalgia a estampa que representava o quarto dela: uma pequena secretária, um sofá, prateleiras cobertas de livros; entre aquelas paredes de cores vivas, ela trabalhava, lia, tomava chá, sem testemunhas: como a invejava! Pela primeira vez me apercebi de uma existência mais favorecida do que a minha. E agora, afinal, também eu estava em minha casa! A minha avó tinha libertado o seu salão de todas as poltronas, mesinhas e bibelots. Comprei móveis de bétula, que a minha irmã ajudou a escurecer com verniz castanho. Tinha uma mesa, duas cadeiras, um grande baú, que servia também de assento, estantes para os livros, um sofá a combinar com o papel alaranjado que pus nas paredes. Da sacada do meu quinto andar, dominava os plátanos da Rue Denfert-Rochereau e o leão de Belfort. Tinha um fogareiro vermelho, a petróleo, e que cheirava mal; parecia-me que deste cheiro dependia a minha solidão, e gostava dele. Que alegria poder fechar a porta e passar dias ao abrigo de todos os olhares! Durante muito tempo fui indiferente à decoração dos lugares em que vivia; talvez por causa da imagem do Mon Journal, preferia os quartos com sofá e prateleiras, mas qualquer sítio me servia; ainda me bastava poder fechar a porta para me sentir plenamente satisfeita.”

A Força da Idade, Simone de Beauvoir


“Em terra de cegos, quem tem um olho é rei”


Que o diga o Almirante, de olho verde e voz de comando, astuto submarinista no mar de destroços em que se tornou o cenário político português.


segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Já o disse antes: por vezes, a minha mente corre por caminhos desconhecidos e contra a minha vontade. Não imagino onde terá ido buscar aquele imaterial, se poucas coisas há mais materiais do que um edifício sólido. Talvez o imaterial do tempo que me transporta a outras épocas, mas não era exactamente nisso que pensava. Creio.

A propósito, quero muito voltar a Notre-Dame. Só lá entrei duas vezes, num tempo anterior ao incêndio devastador de há cinco anos, quando a Catedral era negra, sombria e bela. Agora, nos jornais e nas televisões, parece-me tão radiosa e limpa que temo tê-la perdido para o sempre que me resta.  


O imaterial também pode envelhecer mal. O Coliseu de Lisboa envelheceu mal. Carrega o peso do tempo com a decadência dos desvalidos.

De resto, a mulher ao meu lado cabeceou o concerto inteiro; por pouco, sobre o meu ombro. Sobressaltava-se a cada ovação, e, então, aplaudia energicamente como se não tivesse perdido uma nota. Estive tentada a pedir-lhe para trocar de lugar comigo, contra o desperdício da vista tão mais generosa. Mas quase não se viram telemóveis no ar e o concerto foi bom. O arranjo de Mário Laginha do Grândola Vila Morena é fantástico, o rufar dos pianos soberbamente interpretado pelos dois. Descobrir com prazer Out of Order, de Luís Tinoco; a bonita e sóbria homenagem a Bernardo Sassetti. E no fim, o rumorejar da sala embalando, baixinho, o refrão do Venham mais cinco. Foi realmente bonito. Mário Laginha e Pedro Burmester estavam felizes e tocaram com uma alegria tangível.

Bach será sempre Bach. Também de clássicos se fez o concerto, logo de início, ainda a mulher não dormia.


quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

“Cem Anos de Solidão” é um livro assombroso. Se há clássico que não acaba de dizer o tem para dizer (outra vénia para Italo Calvino), a obra-prima de Gabriel García Márquez é um desses: é preciso voltar; e voltar; e voltar. É sagrado. Adaptá-lo ao écran, numa série da Netflix, soa a heresia. García Márquez, que nunca aceitou ver o seu livro filmado, bem pode praguejar do Além, esconjurar os filhos: já tinham decidido publicar-lhe o “Vemo-nos em Agosto”, agora trazem a solidão de Macondo para a televisão, na sua narrativa circular e maldita.

“Vemo-nos em Agosto” devia ter ficado na gaveta, também concordo, mas a série que a Netflix acaba de estrear parece não violentar a arte de García Márquez, como se temia (se calhar só eu). Vi os dois primeiros episódios e achei realmente belo. Competente e belo. Não é o livro, não é suposto, mas, de momento, sobrevive soberbamente à sua própria maldição.


sábado, 7 de dezembro de 2024




 

quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Maria Teresa Horta

"Desperta-me de noite

o teu desejo

na vaga dos teus dedos

com que vergas

o sono em que me deito

 

pois suspeitas

 

que com ele me visto

e me defendo

É raiva

então ciume

a tua boca

 

é dor e não

queixume

a tua espada

 

é rede a tua língua

em sua teia

 

é vício as palavras

com que falas

 

E tomas-me de foça

não o sendo

e deixo que o meu ventre

se trespasse

 

E queres-me de amor

e dás-me o tempo

 

a trégua

a entrega

e o disfarce

 

Lembras os meus ombros docemente

na dobra do lençol que desfazes

na pressa de teres o que só sentes

e possuíres de mim o que não sabes

 

Despertas-me de noite

com o teu corpo

 

tiras-me do sono

onde resvalo

 

e eu pouco a pouco

vou repelindo a noite

 

e tu dentro de mim

vais descobrindo vales."

As Nossas Madrugadas, Maria Teresa Horta

 


“Minha Senhora de Mim” foi publicado pela primeira vez em 1971. Era precisa muita coragem para ofender daquela maneira a moral tradicional do país, que mantinha a mulher em regime de obediência ao seu papel de esposa e mãe. Assexuada. Maria Teresa Horta talvez prefira que se diga: o que é preciso é Liberdade. Por ela, foi perseguida e espancada. 

Este ano, a BBC incluiu-a na sua lista das 100 mulheres mais influentes e inspiradoras de todo o mundo.

Gosto de ouvi-la aqui:



domingo, 1 de dezembro de 2024




 

sábado, 30 de novembro de 2024


Falta-me talento para odiar. Se o tivesse, o que não faria das mulheres que moram nos teus sonhos; mesmo daquelas a quem dás o meu nome.



quinta-feira, 21 de novembro de 2024

O filho de uma grande amiga – a amiga que me liga para nos ouvirmos rir, aquela com quem tenho uma relação quase telepática – está, neste momento, na Suécia a fazer parte do mestrado. Recebi a mensagem na segunda-feira ao fim da tarde: uma fotografia do pequeno caderno de instruções sobre o que fazer em caso de guerra. Num primeiro e brevíssimo instante pensei que era uma piada.

Pragmáticos, os suecos.

Março de 2020; o vírus que vinha da China – ou talvez não, tinha escapado de um laboratório em Wuhan, não, não era possível, mostravam os estudos genéticos, talvez sim, afinal os estudos não são conclusivos, enquanto as vacinas são seguríssimas, ou se calhar não. Era a maior ameaça ao mundo que me cabia. Imperava um medo fraterno. A bondade não emergiria das cinzas para suturar a ponto arco-íris as chagas da humanidade, mas havia um embrião de esperança. Estávamos em guerra, quando a guerra podia ser invocada em vão, impunemente, poeticamente, sem agravo nem remorso. Foi ontem, e foi como se se tivesse passado um século. O novo normal deu lugar ao mundo mudou. Uma mutação orgânica, febril, corrosiva, um corpo vivo que se contorce e regenera perpetuando a sua própria fragilidade.

Ando obcecada, furiosa, perplexa, fascinada. A zona de interesse ruiu; resta este entre-lugar, movediço, imparável, de onde só se regressará a ferros, rasgando ventres e carregando as dores. Só a noite me parece inviolada; é nela que te guardo e reconheço.


sábado, 16 de novembro de 2024




 

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

 

O Senhor das Moscas 


William Golding


terça-feira, 12 de novembro de 2024





segunda-feira, 11 de novembro de 2024


À tarde, ouvi as preces dos pássaros. Há um sussurro de vozes carregadas pela brisa a que ofereço o rosto para que me mime. E a ladainha rouca do vento que me sopra ao ouvido segredos por revelar. Uma provocação dos meus sentidos. O mesmo vento imprevisto que faz gemer a rocha lascada num coro de penas. Uma expiação onde nem sempre te encontro.


A morte de dez pessoas a quem falhou, pelo menos, um primeiro socorro como consequência directa das greves no INEM é quase uma notícia de rodapé. O que agora tem ocupado horas e horas de emissão informativa é a transferência de Rúben Amorim para o Manchester United. Sabemos escolher “causas nacionais”. Os canais ditos de informação transformaram-se numa espécie de passadeira vermelha, um desfile de vaidades de gente maioritariamente presunçosa e medíocre. Tal qual este Governo parido por Luís Montenegro. Demissões porquê, para quê?

Sobre a desfaçatez do Presidente da República já tudo se disse. Marcelo Rebelo de Sousa é um impostor já muito pouco suportável: não gosta “de falar de problemas específicos da governação ou da Administração Pública, mesmo quando são muito urgentes ou muito prementes”, a não ser quando gostava e falava e exigia e ameaçava, vá lá, não lhe estraguem o final de mandato, a ver se o senhor recupera isso da popularidade. 


sábado, 9 de novembro de 2024

quinta-feira, 7 de novembro de 2024




 

quarta-feira, 6 de novembro de 2024


Se eu gritar quem poderá ouvir-me, nas hierarquias dos Anjos? E, se até algum Anjo, de súbito, me levasse para junto do seu coração, eu sucumbiria perante a sua natureza mais potente. Pois o Belo apenas é o início do Terrível, que só a custo podemos suportar, e se tanto o admiramos é porque ele, impassível, desdenha destruir-nos. Todo o Anjo é terrível.
E eu me contenho, pois, e reprimo o apelo
deste soluço obscuro. Ai de nós, mas quem nos poderia
valer? Nem Anjos, nem homens
e o intuitivo animal logo adverte
que para nós não há amparo
neste mundo definido. Resta-nos, quem sabe,
a árvore de alguma colina, que podemos rever
cada dia; resta-nos a rua de ontem
e a felicidade continuada de um hábito
que a nós se afeiçoou e em nós permaneceu.
E a noite, a noite, quando o vento pleno dos espaços do mundo nos devora o rosto – a quem se furtaria ela,
a desejada, ternamente enganadora, que com tanto esforço se ergue em frente do coração solitário? Será ela mais leve para os que se amam?
Ah, apenas ocultam, um ao outro, a sua sorte.
Não o sabias? Arroja o vácuo aprisionado nos teus braços
para os espaços que respiramos – talvez os pássaros possam sentir o ar mais dilatado, num voo mais comovido.

Sim, as primaveras precisavam de ti.
Muitas estrelas queriam ser percebidas.
Do passado profundo afluía uma vaga, ou
quando passavas sob uma janela aberta,
um violino d’amore se abandonava. Tudo isto era uma missão.
Acaso a cumpriste? Não estavas sempre
distraído, à espera, como se tudo
anunciasse a amada? (Onde queres abrigá-la,
se grandes e estranhos pensamentos vão e vêm
dentro de ti e, muitas vezes, se demoram nas noites?)
Se a nostalgia vier, porém, canta as amantes;
ainda não é bastante imortal a sua celebrada ternura.
Tu quase as invejas – essas abandonadas
que te pareceram tão mais ardentes que as apaziguadas. Retoma infinitamente o inesgotável louvor. Lembra-te: o herói permanece, a sua própria queda foi um pretexto para ser – nascimento supremo.

Mas às amantes, retoma-as a natureza no seio esgotado, como se as forças lhe faltassem para realizar duas vezes a mesma obra.
Com que fervor lembraste Gaspara Stampa,
cujo exemplo sublime faça enfim pensar uma jovem
qualquer, abandonada pelo amante: por que não sou como ela? Frutificarão afinal esses longínquos sofrimentos? Não é tempo daqueles que amam se libertarem do objecto amado e,frementes, 
superá-lo?

Assim a flecha ultrapassa a corda, para ser no voo mais do que ela mesma. Pois em parte alguma se detém.

Vozes, vozes. Ouve, meu coração, como outrora apenas os santos ouviam, quando o imenso clamor os erguia do chão; eles porém permaneciam ajoelhados,
os prodigiosos, 
e nada percebiam, 

tão absortos ouviam. Não que possas suportar a voz de Deus, longe disso. Mas ouve essa aragem,  a incessante mensagem que o silêncio prodiga.

Ergue-se agora, para que ouças, o rumor
dos jovens mortos. Onde quer que fosses,
nas igrejas de Roma e Nápoles, não ouvias a voz do seu destino tranquilo? Ou inscrições não se ofereciam,
sublimes? A estela funerária em Santa Maria Formosa…
O que pede essa voz? A ansiada libertação da aparência de injustiça que às vezes perturba a agilidade pura de suas almas.

É estranho, sem dúvida, não habitar mais a terra,
abandonar os hábitos apenas aprendidos,
às rosas e a outras coisas singularmente promissoras não atribuir mais o sentido do vir-a-ser humano;
o que se era, entre mãos trêmulas, medrosas,
não mais o ser; abandonar até mesmo o próprio nome como se abandona um brinquedo partido.
Estranho, não desejar mais os nossos desejos. Estranho, ver no espaço tudo quanto se encadeava, esvoaçar,
desligado. E o estar-morto é penoso
e quantas tentativas até encontrar no seu seio um vestígio de eternidade. – Os vivos cometem o grande erro de distinguir demasiado bem. Os Anjos (dizem) muitas vezes 
não sabem se caminham entre vivos ou mortos.

Através das duas esferas, todas as idades a corrente eterna arrasta. E a ambas domina com o seu rumor.

Os mortos precoces não precisam de nós, eles que se desabituam do terrestre, docemente,
como do suave seio maternal. Mas nós,
ávidos de grandes mistérios, nós que tantas vezes
só através da dor atingimos a feliz transformação, sem eles
poderíamos ser? Inutilmente foi que outrora, a primeira música para lamentar Linos, violentou a rigidez da
matéria inerte? No espaço que ele abandonava, jovem, quase deus, pela primeira vez o vácuo estremeceu
em vibrações – que hoje nos trazem êxtase, consolo e amparo.


Rainer Maria Rilker – Primeira Elegia


terça-feira, 5 de novembro de 2024



segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Degradação

Ontem ouvi Jaime Nogueira Pinto – um dos nossos apoiantes trumpistas – criticar Kamala Harris por não ter nada para dizer, excepto “dizer mal” de Trump. Só não dá para rir porque a coisa é realmente séria. Também não vale a pena arrancar cabelos: é o que é. Mulheres insultadas por Trump apoiam Trum; imigrantes insultados por Trump apoiam Trump. Não é estupidez, é economia, dizem os entendidos. Pode ser, em parte. Mas é, essencialmente, poder. Poder na sua forma mais primitiva. Os "homens fortes" querem continuar a sê-lo, e em crescendo. Como nem todos são completamente idiotas, Elon Musk há-de enxotá-lo como a uma varejeira assim que puder dispensá-lo – Trump pode ser "um tipo fantástico", mas não passa de um peão no xadrez do homem mais rico do mundo. 

Já não estamos em 2016. Quem vota em Donald Trump – quem votaria em Donald Trump se pudesse – já não o faz “apesar de”, “apesar dele”. Aceitam ser representados por um homem que elevou o insulto taberneiro, a perseguição, a vingança, a programa político. Normalmente, são os mesmos que rejeitam a “venezuelização” da pátria, o comunismo, a doutrinação das massas, os rebanhos e etc – Trump, evidentemente, é o oposto disso tudo: são sempre superiormente inteligentes os que pensam como nós.


domingo, 3 de novembro de 2024

«En España, lo mejor es el pueblo. (…) Siempre ha sido lo mismo. En los trances duros, los señoritos invocan la patria y la venden; el pueblo no la nombra siquiera, pero la compra con su sangre y la salva. En España no hay modo de ser persona bien nacida sin amar al pueblo.»

Antonio Machado

 

Só conheço espanhóis desses; dos melhores. Fico feliz por sabê-los bem, apesar da tristeza e do choque.


sexta-feira, 1 de novembro de 2024



segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Nick Cave and the Bad Seeds

 




Em palco, Nick Cave é um homem sem idade. Não se dá pelos seus sessenta e sete anos; como podia ter atravessado vários séculos como um Nosferatu. É imortal. Catártico. Um cantador de histórias, capaz de transformar um concerto com milhares de pessoas numa conversa íntima; um monólogo, muitas vezes. Há uma tensão permanente, tangível, entre a beleza e a dor, a alegria e a tragédia. É um homem exposto.

Warren Ellis é um druida. Podia ter saído das crónicas de Nárnia.


domingo, 27 de outubro de 2024

A modernidade desfez outro prazer antigo: o de atrasar uma hora o relógio mecânico e prolongar o prazer de fazer recuar o tempo. Mesmo que apenas uma vez por ano, e para recuperá-lo à entrada da Primavera. Restam-me os relógios de pulso – ninguém me apanha com uma bugiganga daquelas espertas que mede o humor, as horas de sono que permitem sonhar (desconfio que só tenho das outras), os níveis de stress e quantos passos demos ao fim de um dia. Prefiro o tique-taque compassado, circular, que marca o presente sem alarme. Sabe-me a renovação. Como o sangue que se regenera a cada ciclo. E a ilusão, também: de que posso atrasar-me, resgatar o tempo que me falta para tudo o que não fiz ainda, ler os livros que acumulo, os autores que descubro por feliz acaso. Sem segredo algum…

 

Rodeio-te de nomes, água, fogo, sombra,
vagueio dentro das tuas formas nebulosas.
Como um ladrão aproximo-me entre palavras e nuvens.
Não te encontrei ainda. Falo dentro do teu ouvido?
Entre pedras lentas, oiço o silêncio da água.

A obscuridade nasce. Tens tu um corpo de água
ou és o fogo azul das casas silenciosas?
Não te habito, não sou o teu lugar, talvez não sejas nada
ou és a evidência rápida, inacessível,
que sem rastro se perde no silêncio do silêncio.

O que és não és, não há segredo algum.
Selvagem e suave, entre miséria e música,
o coração por vezes nasce. As luzes acendem-se na margem.
Estou no interior da árvore, entre negros insectos.
Sinto o pulsar da terra no seu obscuro esplendor.”

 

António Ramos Rosa


É para ti. Pelas saudades que tenho de ti.


 

"On croit que, lorsqu'une chose finit, une autre recommence tout de suite. Non. Entre les deux, c'est la pagaille."

Marguerite Duras, Hiroshima Meu Amor


sábado, 26 de outubro de 2024





Saturno Devorando o Filho (pormenor), Francisco de Goya

Não posso escrever aqui tudo o que se me oferece dizer sobre o líder parlamentar daquele bando de imprestáveis que constitui a claque de André Ventura lá na Assembleia da nossa República. Representam (ainda?) um milhão e não sei quê de nós, já sei, mas falta-me a caridade cristã que manda amar o próximo como a mim mesma, e sobra-me a arrogância de me considerar suficientemente dissemelhante daquela mole bafienta de gente de bem. Não me servem nem para odiar, porque o ódio é coisa quase nobre, primordial, não esta banalização pornográfica, a perseguição canalha que os faz salivar como cães de Pavlov cada vez que cheira a desgraça. Não. O meu ódio é da intensidade trágica das paixões dos grandes clássicos da literatura, extenuante, espelho sombrio do amor e igualmente denso; muito diferente deste ódio raso, ruminante.   





 

"Musk, o cavalo de Troia"


Luís Pedro Nunes, EXPRESSO

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Há momentos em que a adoro.

 

"Tenho sobre Coppola um direito proprietário. Vi os filmes todos, mais de uma vez. E considero sem apelo que apenas três génios transcenderam a cansada designação de sétima arte. Charles Chaplin, Orson Welles e Francis Ford Coppola. O direito proprietário deriva do facto de ter uma vez tomado uma decisão crucial da minha vida à saída de “Drácula”. Estava em Times Square, numa daquelas grandes salas americanas cheias de néons, com ecrãs gigantes, numa altura em que na Europa ainda não havia ecrãs gigantes.

“Drácula”, um filme mal-amado numa fase em que Coppola era crucificado, e estava mais ou menos arruinado para variar, é uma obra-prima mal compreendida. Uma herança do Romantismo numa época realista e naturalista que desdenha esse passado e recusa o artifício e o sobrenatural. A realidade não chega para explicar o mundo. O filme tem uma das grandes interpretações de Gary Oldman, por vezes considerado o maior ator vivo. O problema quando se escreve sobre Coppola é o de destruir o valor dos adjetivos hiperbólicos e cair na redundância do elogio. O homem é maior do que a vida.

Nessa noite em Times Square, tive uma terminal discussão sobre “Drácula”. Eu a favor, o outro contra. Os argumentos alinhavam-se do lado contrário. Barroco, excessivo, gratuito, uma ópera mal conduzida por um encenador que destruía a história e o mito de Bram Stoker, reduzindo o vampiro a uma personagem grotescamente vulnerável. Separámo-nos, em mortal incompatibilidade. Prossegui na minha admiração por Coppola. Há pouco tempo fui rever “One From the Heart”, saí da sala a esvoaçar.

“Megalopolis”. Coppola passou anos a dedicar-se à hotelaria e aos vinhedos de Napa Valley para, aos 85 anos, realizar o sonho do filme. E financiá-lo. Orson Welles, no fim da vida, fazia anúncios para ganhar dinheiro para “The Other Side of the Wind”, megalomania inacabada. Welles morreu meio de desgosto, como me contou Barbara Leaming, a biógrafa que mais próxima esteve dele no fim. Quando ia a Nova Iorque, jantava com ela e o marido, um professor de literatura russa na universidade, amigo de Joseph Brodsky e dos exilados russos que por esse tempo assombravam a baixa de Manhattan, antes da gentrificação, da chegada dos construtores. Da destruição da boémia artística da Village. Os biografados de Leaming são, além de Welles, John F. Kennedy, Winston Churchill, Jacqueline Kennedy Onassis, Marilyn Monroe, Rita Hayworth e Roman Polanski. Podemos dizer que a minha amiga se dedicou à grandeza. Falta neste cartel Francis Ford Coppola. Mundo mega mais do que meta.

“Megalopolis”. As imagens são poderosas, certos planos são o máximo expoente da alucinação, mas o fio narrativo não só é inconsistente como a fragmentação discursiva pode resvalar no lugar-comum. Coisa que o velho Coppola nunca fez. Os monólogos de Shakespeare e os intermezzos romanos e gregos, que descendem da cultura clássica e europeia deste cineasta americano, são uma bengala que sustenta uma ausência de argumento. Ou, diria o pós-modernismo, uma ausência de metanarrativa. Perigo da queda no vazio das palavras, amparada pela literatura.

A implausibilidade não é o problema principal. A implausibilidade nunca foi um problema, embora seja confortável para o espectador. O problema é que a ambição de Coppola é servida pela idade avançada. Os 85 anos são os 85 anos. Sozinho e solitário, Coppola não pediu ajuda para realizar o sonho. Uns anos antes, certas falências narrativas não seriam postas em cena. O que faz ali Hitler?

Além da idade, Coppola esteve muito tempo sem filmar, o que significa que fez o que se faz à saída do túnel da privação, enfiou tudo dentro do filme. Pode resultar num conjunto de vinhetas. O tema é vasto, monstruoso, a decadência do império americano. O filme é uma soma de pedaços desconjuntados, um Frankenstein a vaguear por entre as ruínas do capitalismo triunfal.

“Megalopolis” tem um lado salvífico, o olho da câmara. Que aguenta a narrativa sem narrativa. Antes de atirarem pedras a Coppola, os críticos alimentados a Marvel deveriam pensar como é que os fragmentos deste discurso visual podem aplicar-se ao mundo americano. Um sonho, uma visão, uma utopia que caiu no poço da vulgaridade e da malignidade distópicas. Um império a desmoronar-se, socorrendo-se do orgulho militarista, como escreveu Gore Vidal. Nova Roma servida pelo dinheiro e a idolatria do dinheiro, com visionários que propiciam a corrupção das almas e dos princípios. Que distorcem a realidade até a tornarem um teatro de acusações e traições. E que persistem em salvar-nos do mal, como deuses imperfeitos e sinceros.

Cheguei a casa vinda do cinema, rememorando as imagens, e encontrei Donald Trump junto das batatas fritas. Num qualquer McDonald’s algures nesse território desconjuntado chamado América. Trump, o aprendiz de feiticeiro, o construtor da nova Manhattan, o utilizador do mayor corrupto chamado Giuliani, estava na CNN. Envolvido pelos vapores da máquina fritadeira, de avental, sacudindo o cabelo alaranjado. O aprendiz aprendia a fritar batatas na máquina. Uma vinheta a não perder. Talvez Coppola tenha razão. Talvez a América, como “Megalopolis”, já não faça sentido.

A outra vinheta é a de um Elon Musk despenteado, aos pulos, na descoberta da emoção política e do amor da plebe, oferecendo um cheque de um milhão de dólares a qualquer grupo de gente na Pensilvânia que convencesse outro grupo de gente a votar em Trump. Sendo a Pensilvânia um dos estados da chamada indecisão, Musk faz o que sabe fazer além da engenharia do futuro. Atirar dinheiro para cima do problema. Musk é um Coriolano, e se assim continuar transformar-se-á num protofascista, o ponto em que passará a odiar a plebe depois de a amar.

Estas duas vinhetas reabilitam Coppola, ou a visão deformada de Coppola. “Trump manages fry station”, a linguagem no original, em rodapé, não será mais implausível e irreal do que os diálogos de “Megalopolis”? Trump insultando Harris e chamando-lhe shit president não será apenas uma extensão da hiper-realidade da Nova Roma em Nova Iorque? Coppola percebeu a falácia imperial. A intuição está absolutamente certa. A linguagem atual dos protagonistas é menos distinta do que a do filme.

O anacronismo da idade leva o génio a apoderar-se de dois símbolos do bezerro de oiro que deixaram de o ser. Não são os banqueiros nem os construtores que rasgam o tecido do império. São personagens como Musk, os plutocratas da tecnologia, são os visionários de mágicas colonizações do tempo pelos homens-máquinas que eles inventam, oferecendo à plebe o vício da gratificação imediata. Os plutocratas da inteligência artificial estão a ressuscitar as centrais nucleares desativadas para alimentarem a fome de energia e ninguém diz uma palavra. A plebe anestesiada não resiste nem pensa, consome, admira, elege.

Isto, Coppola, que é do século XX, não podia transferir para o cinema. É demasiado tarde. Não teve tempo de estudar o admirável mundo novo, a opacidade, o segredo, a complexidade algorítmica, e recorreu aos banqueiros e construtores como arquitetos da impiedade. São categorias obsoletas. O algoritmo é mais opressivo do que o megalon.

A visão está certa. “Megalopolis”, na formidável desconjunção, acerta no diagnóstico. O vilão, personagem central do drama humano, continua igual através dos séculos. Na tragédia de Shakespeare ostentava uma grandeza que o vilão do século XXI, atolado na lama da corrupção, não pode ostentar. Trump ou Musk nunca serão Macbeth.

A proximidade da morte levou Francis Ford Coppola a trocar o final trágico desta ópera por um final feliz, ou quase feliz. Pelo menos, otimista. Um futuro radioso para a espécie destruidora de mundos. Um futuro altamente improvável. César e Catilina, duas referências históricas não complementares, vivem em Adam Driver sem contradição. Os atores apreciam a grandeza. César foi César, Catilina foi um conspirador que viveu da violência e que pela violência foi aniquilado. César foi o construtor do império sobre as ruínas da república romana e foi assassinado nos Idos de Março. Cícero, na Roma Antiga, suprimiu a conspiração de Catilina executando conspiradores sem julgamento para salvar a república. Públio Clódio Pulcro foi o tribuno da plebe, um dos inimigos de Cícero. As mulheres de “Megalopolis” são um veículo passivo das paixões dominantes. E aparece uma espécie de Taylor Swift, a vestal. É genial, fica dito.

Em “Megalopolis”, Coppola não cuida da veracidade histórica, distribui os nomes, cria as próprias referências retiradas de uma cultura literária e histórica enciclopédicas. Uma cultura que deixou de existir, como prova a cegueira dos críticos que deixaram escapar múltiplas referências. A ignorância gera a incompreensão.

O mundo em que vivemos não é o de Francis Ford Coppola, é pior. É real."

Clara Ferreira Alves, EXPRESSO

 

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Marco Paulo

Cresci num bairro social. Os meus pais – a quem devo tudo o que sou e adoro mais do que sei expressar – empenharam-se sempre em que nunca nos faltasse o essencial, a mim e à minha irmã. Pudemos estudar, escolher uma carreira, um caminho que, para eles, não foi possível; mas, para nós, o tal elevador social funcionou. Devia ser assim.

Durante muitos anos, tivemos um grupo de amigos com quem saíamos uma vez por ano, no Verão, para um fim-de-semana prolongado: era o que chamávamos as nossas férias. Muitos desses amigos já faleceram, eram todos mais velhos que os meus pais, e guardo recordações maravilhosas desses tempos de menina. 

Havia poucas crianças. Eu e a minha irmã, sempre as mais novas do grupo, passávamos o ano a organizar um reportório de canções populares e a ensaiar para – não acredito que vou escrever isto – cantarmos durante essas viagens, que fazíamos num daqueles autocarros de excursão. O que começou com uma brincadeira transformou-se em programa obrigatório. Cumpríamo-lo com imensa alegria, divertíamo-nos imenso com aquilo. É claro que nunca faltavam canções de Marco Paulo. Ainda sei de cor uma data delas.

Em memória dos bons velhos tempos, para os presentes e para os ausentes,





quarta-feira, 23 de outubro de 2024

 

Il faut éviter de penser à ces difficultés que présente le monde, quelquefois. Sans ça, il deviendrait tout à fait irrespirable


Marguerite Duras


terça-feira, 22 de outubro de 2024

Os cachinhos do cabelo tremem-lhe como molas pendulares, ao ritmo da birra que o faz espernear deitado no chão do supermercado. Um miúdo daqueles a quem faltam muitos banhos de água fria, vê-se logo. O meu filho fez-me uma parecida, uma vez única: enfiei-o imediatamente numa banheira… mentira. Veio uma velha atrás mim, de carro, enquanto eu ainda lutava para enfiar o puto na maxi-coisa do meu: mas o que é que está a fazer ao menino, vou já aí, como se eu estivesse a estrangulá-lo. E veio. Deu a volta com o carro para saber, afinal, que mal fazia eu à pobre criança. Trazia sempre rebuçados no bolso, para os netos (dos outros também, evidentemente), e enfiou-se-me no carro, determinada a calar-me o menino a bem. Estive tentada a puxar-lhe o cabelo branco imaculado, mas estava exausta. O meu filho calou-se, eu tirei-lhe os rebuçados e a velha foi-se embora, a resmungar não sei o quê.

Adiante.

A irmã (parece uma irmã) do pequeno ditador segura-o pela mão, enquanto o arrasta pelo chão, mas o diabrete resiste. Quando a irmã desiste e lhe solta a mão minúscula, a fera levanta-se de um salto e corre para a secção dos brinquedos. Não é aqui!, não é aqui!, ouço-o gritar lá do fundo, com o cabelo aos saltinhos, a preparar nova investida.


Megalópolis

Ainda não estou preparada para dizer mal. Não achei péssimo nem fantástico.

É interessante e demasiado, belo e cacofónico, infantil e subtil, crítico e cómico, exuberante e trágico nem sempre no mesmo sentido da genialidade de William Shakespeare, apesar das citações e das poses artificialmente, propositadamente, teatrais e dramáticas.

Desarmonioso.

O que eu acho mesmo é que há um grau de loucura ao alcance de poucos – pelos menos, em estado sóbrio – que às vezes invejo. Anormalidade em estado puro.





 

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

"na realidade, sou um realizador de segunda. Mas, como realizador de segunda, sou de primeira."


Por acaso discordo. É mesmo um realizador de primeira. Apocalypse Now – que também eu já vi várias vezes, e nunca deixa de me apunhalar e surpreender – teria bastado. Impressionante. "Ouvir o filme. É o filme que nos diz como é que se faz". É exactamente o que ali transparece. Esquizofrénico. Absurdo. Requer uma certa coragem falar dos nossos próprios campos de batalha, aceitar que o Mal é algo profundamente humano.

Tão boa, esta entrevista de Francis Ford Coppola ao Ípsilon.


"Week in Wildlife"

 



Fotografia: Jeroen Hoekendijk

"A sperm whale in the Azores, photographed by Jeroen Hoekendijk, who spent a week on the archipelago capturing the abundance of marine life there. “This sub-adult female, about 10 metres long, hung beneath the clear surface of the water,” says Hoekendijk. “It almost looked like a chlorinated swimming pool – except that it was 1km deep.”"





Fotografia: Harish Tyagi/EPA


Marginal

Sei que posso ser muito ingénua, mas há sempre pior. Por exemplo: os que acreditavam piamente que Pedro Nuno Santos ia “analisar”, “ponderar” e decidir “responsavelmente” viabilizar ou não viabilizar a proposta de Orçamento de Estado do Governo de Luís Montenegro, há uma semana, quando era evidente desde a noite em que assumiu estoicamente a derrota que o líder do PS não confiava nada naquele “não é não”. Creio que a pressa vinha daí: uma vitória curtíssima da AD mais uma subida estrondosa do Chega igual a aqueles tipos vão ter mesmo de se entender, e eu posso lavar as mãos como Pilatos.

Luís Montenegro não será o estratega brilhante que levou a sua vontade a bom porto contando com a impetuosidade suicida do enfant cada vez menos terrible: soube esperar, arriscou, e, a dada altura, os astros alinharam-se. No dia em que anunciou ao país as alterações ao Orçamento de Estado para ir ao encontro das exigências do PS, ainda deglutia um pequeno sapo; muito longe do sorriso quase escarninho de ontem. Esperou, desejou, conseguiu, diria o senhor presidente. Esteve muito bem.

Podíamos, agora, parar por aqui no quem é que humilha quem, mas o povo gosta de sangue e a comunicação social faz as exéquias com indisfarçável gula. Nem falo das outras “forças políticas”, porque não há nenhuma realmente interessada em discutir soluções; AD incluída. É uma guerrinha de bastidores, ataques pessoais, mediocridade ao mais alto nível.

Ontem assinalou-se o Dia Internacional da Erradicação da Pobreza. Portugal tem mais de dois milhões de pobres. Mesmo entre os que trabalham a tempo inteiro, há quem trabalhe apenas para pagar contas. Será assim tão difícil encontrar pontos comuns para acomodar uma discussão séria sobre isto? Pergunta a parte ingénua de mim.


quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Nesta margem, a avenida é limpa e o bairro é chique. Há um leve cheiro a jasmim, e edifícios elegantes e esterilizados do outro lado da rua. Observo-os, perdida por detrás da lente da minha máquina fotográfica. Os outros seguem mais à frente. Os miúdos riem e falam de coisas que, à distância, apenas adivinho. É espantoso, o tanto que têm para conversar, juntos as quase 24 horas dos dias de férias.

As árvores balançam com graça os seus ramos esguios, derramando, sobre o chão escaldante, sombras negras, irrequietas, que logo escoam céleres pelos sumidouros rendilhados que o sol torna mais brilhantes.

Vou distraída. Demoro um pouco a perceber que o homem se dirige a mim, em passo largo. Um passo largo. Nem vi de onde veio, materializou-se diante de mim, moreno de cabelo curto e negro, fardado; parece-se com um segurança. Levanta a mão sem me tocar, não lhe entendo uma única palavra, mas sei que me manda parar. Percebo, intuitivamente, que fiz algo que não devia. Uma fotografia. Aponta para a minha máquina e mantém-me refém de uma suposta autoridade que me confunde. Continua no meu caminho, impassível, e sinto o calor apertar-me mais. Os outros, lá adiante, parecem distraídos. Não tarda, escapam-se à esquina da rua e deixarei de os ver. Amaldiçoo-me por me ter deixado ficar tão para trás, eu e os meus malditos instantes. Irrepetíveis, urgentes. Inadiáveis.

Continuo a encarar o homem na minha frente. Estou agora certa de que se trata de um problema com alguma ou algumas das minhas fotografias. Mostro o écran da máquina e pergunto se devo apagar alguma coisa – não desconfio o quê –, imaginando que me faço entender de algum modo. Segura na mão um walkie-talkie obsoleto que aproxima do rosto enquanto olha para mim. Fala com alguém, e é evidente que aguarda instruções. A esquina está cada vez mais próxima, mas não quero chamar. Receio elevar demasiado a voz, denunciar-me na aflição tonta que me agonia. O riso das crianças chega-me já encolhido, pálido, e o calor também me ameaça.

Perco-me por momentos, entre as sombras e os cantos do tempo, até o homem começar a chamar-me, uma cacofonia insistente e confusa. Acaba por tocar-me no braço, à altura do cotovelo, leve, mais suavemente do que sugere o enorme chinfrim em que pretende que eu o entenda. Mas compreendo que posso ir, afinal, com a minha máquina e as minhas fotografias intactas. Num devaneio inútil, desejo, intimamente, poder entender e fazer-me entender todas as línguas do mundo.

Acabam de chegar à esquina quando se voltam, finalmente, para trás. Mas já está tudo bem. Volto a escutar as gargalhadas cristalinas, inocentes e alegres como antes.


quarta-feira, 16 de outubro de 2024




 

Perturbador

Há dias em que me deixo maravilhar pelo fenómeno Trump. O ex e parece que inevitavelmente próximo presidente dos Estados Unidos da América continua a acreditar (ou a fingir: para o caso e para a causa, é indiferente) que lhe roubaram a eleição de 2020; instigou os seus apoiantes à insurreição; não se demarcou dos cânticos que apelaram ao enforcamento de Mike Pence; promete perseguir e mandar prender opositores políticos; propõe um dia de purga, uma hora, vá, one really rough hour, para que a polícia possa fazer o seu trabalho livre de pressões políticas – que é como quem diz o que toda a gente suspeita –; incita permanentemente ao ódio, não só contra imigrantes, mas contra todos os que ousam dizer-lhe não; alimenta teorias conspiratórias que passam, agora, pela manipulação de fenómenos meteorológicos – de “semear” nuvens para produzir localmente chuva em regiões afectadas por secas, coisa possível, à criação de furacões obedientes, guiados como mísseis para atingirem deliberadamente estados republicanos. E, no entanto, surge como o candidato inabalável, imbatível. Intriga-me. Estúpidos ou não, não é (apenas) economia: diz quem sabe, a economia não está pior sob a administração Biden, antes pelo contrário.

Nada disto é novo, no entanto. Só nunca tinha sido omnipresente, creio.

Donald Trump emergiu como figura política altamente, visceralmente, polarizadora, para se transformar num fenómeno cultural e sociológico de quase culto. O quase é para não deixar morrer a (minha) esperança. 

Há os seus apoiantes incondicionais, capazes de embarcar em qualquer uma das realidades alternativas que o guru lança como pregões sobre a multidão em transe. O herói anti-sistema, um enviado de Deus, se não mesmo o próprio. Depois, há os cínicos. Não se sentariam à mesa para jantar com um patife daqueles, um narcisista sinistramente irritante, mas vêem em Donald Trump um veículo eficaz para aplicar a sua própria agenda; não destruir, mas moldar o tal sistema à imagem dos seus interesses, manobrando nos bastidores enquanto o show se desenrola, entretendo as massas. Será Donald Trump um político astuto ou um joguete nas mãos de vilãos mais poderosos? A História há-de mostrar, mesmo condenada a nunca ensinar.

Donald Trump tem esse carisma autoritário, repugnante, sociopata, que há-de alimentar sempre o fascínio pela transgressão, a ilusão de segurança pela força bruta, olho por olho, dente por dente, a coragem de romper convenções. E o espectáculo. A política americana sempre viveu do espectáculo. A democracia americana e a sua sociedade civil aguentarão melhor um segundo mandato de Trump ou uma nova derrota do republicano, desta vez para uma mulher que ele despreza (como, de resto, desprezará todos os que fazem questão de deixar claro que não estão para o adorar e servir)? Pacificamente, Donald Trump parece ser incapaz de aceitar até a própria vitória.