domingo, 7 de dezembro de 2025
quinta-feira, 4 de dezembro de 2025
(Outras) Declarações sem Interesse Nenhum
Gosto
do Natal. O meu Natal é de sorrisos e mimos e colo e abraços demorados, e,
nisso, não é diferente de muitos outros dias do meu ano, e por isso sou grata,
embora não o verbalize com o despudor que merecia. Talvez o meu Natal sirva
esses pequenos excessos: agradecer o tempo que não perco em discussões
familiares sobre, nem em dias inteiros, insanos, de centro comercial, em filas
intermináveis para a compra de presentes estéreis.
Depois,
há um bacalhau cozido, que não é exactamente com todos, mas não dispensa uma
generosa cama de azeite, muito alho picado directamente no prato e um pouco de
pimenta (que eu prefiro preta), manjar que a família herdou da mania do pai do
meu pai, Natal após Natal.
Há
(não é inevitável?) muita saudade, no meu Natal, mas há também, ainda, uma
alegria de miúda que guardo no fundo de mim como o mais precioso dos bens, e é
sempre esse o meu maior desejo para aqueles a quem quero bem, um breve pulsar
de alegria para aguentar a face miserável do mundo.
quarta-feira, 3 de dezembro de 2025
Sete Pecados Mortais
Soberba – Paraíso Perdido, John Milton
Avareza – A Sibila, Agustina
Bessa-Luís
Luxúria – Madame Bovary, Gustave Flaubert
Inveja – Otelo, William Shakespeare
Gula – Os
Buddenbrook, Thomas Mann
Ira – A Ilíada, Homero
Preguiça - Oblómov, Ivan
Gontcharov
...em (permanente) actualização...
terça-feira, 2 de dezembro de 2025
Doentio...
Onze bombeiros indiciados por violação de um jovem colega sob pretexto de uma praxe.
Dez militares da GNR e um agente da PSP suspeitos de agirem como mercenários, intimidando e agredindo imigrantes explorados e a trabalhar em condições indignas.
O empresário V.M (quem?), que mandava agredir, e se gaba de ter na mão militares da GNR, agentes da PSP e uma procuradora do Ministério Público.
Saem todos em liberdade depois de o Tribunal Central de Instrução Criminal concluir pela "inexistência de indícios dos crimes imputados pelo facto de não ter validado as escutas telefónicas, que não tinham sido transcritas".
segunda-feira, 1 de dezembro de 2025
A primeira vez que vi Guernica ao vivo, o mural ocupando praticamente toda a parede da sala que lhe é dedicada no Museu Rainha Sofía, fiquei atordoada. A própria dimensão do quadro é violenta; magnética. É demasiado. Movemo-nos por dentro daquela devastação, somos outro cinza, outra sombra sobre aquele labirinto de destroços, e nenhuma distância é confortável: torna-se quase físico, como se, por momentos, mais do que observá-lo, o habitássemos na sua brutalidade tridimensional.
Não sei até que ponto Pablo Picasso se sentiria homenageado pela arte de Carlos
Rodríguez no seu Eterno. Gostei muito da primeira parte, e muito pouco
da segunda – essa, supostamente, mais dentro da ousadia de Picasso. Mas a minha
relação com a arte, qualquer forma de arte, é puramente instintiva, animal. Se
me arrasta, se me fere, se me alegra; não sei nada depois disso.
sábado, 29 de novembro de 2025
Já
contei; mais de uma vez. Durmo tão profundamente como se morresse a cada noite. É tão absoluto o
meu sono que há manhãs como a de hoje em que preciso de descolar-me do
colchão, insuflar-me de vida; um balão esvaziado até à última bolsa de ar. Há
uma quase violência nisto, como uma criatura de Frankenstein.
Como de outras vezes, devo tê-la trazido daí, do nada em que repouso.
quarta-feira, 26 de novembro de 2025
"Aedh Wishes for the Cloths of Heaven
Had I the
heavens’ embroidered cloths,
Enwrought with golden and silver light,
The blue and the dim and the dark cloths
Of night and light and the half light,
I would spread the cloths under your feet:
But I, being poor, have only my dreams;
I have spread my dreams under your feet;
Tread softly because you tread on my dreams."
segunda-feira, 24 de novembro de 2025
Novembro
é o meu mês. Seria sempre o meu mês: gosto do fim consumado do Verão, das camisolas
de lã, das luvas, golas tremendas onde aninhar o pescoço. Definitivamente, gosto
de me despir do calor pegajoso de Agosto, que há muito se prolonga por Outubro,
e me deixa sempre doente. Gosto do tempo que posso perder sobre o mar da minha
varanda, sobretudo nestes dias frios, em que é maior o silêncio e a densidade da
noite. É o meu maior luxo, talvez, o tempo que tenho para perder.
domingo, 23 de novembro de 2025
sexta-feira, 21 de novembro de 2025
Ainda me sinto enojada com a notícia do menino de nove anos, a quem colegas da escola agrediram tão barbaramente que resultou na amputação de dois dedos da mão.
É
possível que a violência obscena que grassa nas redes, mais do que
impunemente, exaltada por turbas de milhares, milhões, de seguidores frementes
de raiva não tenha qualquer influência neste crescendo de horrores – violações
em grupo de adolescentes por adolescentes, publicadas no TikTok; agressões
filmadas e partilhadas como troféus; a agressão convertida em entretenimento –,
que sempre houve velhos do restelo contra o avançar do mundo, da rádio à
internet, e que a maldade intrínseca medra sozinha. É possível, mas não
acredito.
Se
é verdade que a natureza humana é complexa e sombria de mil e uma maneiras, a
eleição de Donald Trump como presidente da (ainda?) nação mais poderosa do
mundo democrático, a sua aceitação como símbolo de poder e mudança elevada, agora, à
idolatria, abriu a caixa de Pandora, animou-a, desencadeou um movimento de
subducção que ameaça a civilidade. Não é uma casualidade simplista, como se
Trump fosse, de repente, única e directamente responsável pela violência do
mundo, mas foi, evidentemente, um catalisador. A sua aprovação como chefe de Estado,
daqueles Estados, contribuiu para normalizar e legitimar a brutalidade,
primeiro, no discurso político, depois, na acção governativa. Trump ergueu um
exército de servos para quem o poder e o dinheiro estão acima de qualquer outro
valor, e qualquer meio é válido para lá chegar: insultar, perseguir, intimidar.
"Quiet, piggy" para calar uma jornalista, ou sugerir ameaças
de morte sobre um grupo de adversários políticos; atiçar, constantemente, a sua
matilha contra todos os que ousam desafiá-lo. Não é também isto que faz um ditador? Provavelmente, nem seria preciso perder tanto tempo a branquear os
ficheiros Epstein, deixando apenas o rastro de todos os inimigos: Donald Trump
tornou-se intocável.
Não
admira que Cristiano Ronaldo se tenha juntado à corte, acompanhando o dono
Mohammad bin Salman. Cristiano Ronaldo é um formidável atleta. Tem aquela
capacidade rara de converter críticas em metas, superando-se permanentemente;
depois disso, é outro homem deslumbrado por si próprio, pelo seu poder. A sua
associação a figuras autoritárias não é acidental, é o símbolo de um tempo onde
o poder pessoal, a riqueza e a impunidade parecem ter-se assumido como valores
supremos. E o poder desta gente sobrevive à custa dos que fazem da idolatria um
modo de vida. Como foi que disse Salvador Sobral, naquele concerto pelas vítimas
de Pedrogão Grande, na ressaca da vitória do festival Eurovisão? Pois. Com a
diferença, enorme diferença, de que Salvador Sobral estava – e suponho que
ainda – visceralmente consciente da farsa.
Devia
ser permitido adorar apenas os mortos.
quarta-feira, 19 de novembro de 2025
sexta-feira, 14 de novembro de 2025
Eu
também gosto de ti, ó chuva, mas, o que ontem me manteve encerrada mais de
vinte minutos no carro estacionado, não eras tu, não era chuva.
Desisti,
voltei para casa e reorganizei a minha agenda.
A
avenida por onde passo todos os dias coberta por um lençol de água lamacenta. Subia-se
e descia-se em cortejo, lentamente, cegamente, gente amontoada nas paragens de
autocarro minúsculas para dilúvio tamanho, um lago castanho à porta da escola vazia,
a sirena próxima de um carro de bombeiros rasgando o pranto aceso daquele céu
de fim de mundo.
Não
me sai da cabeça o casal de velhos, afogados no próprio quarto, a água
devorando a casa que habitavam há quarenta anos.
quinta-feira, 13 de novembro de 2025
É verdade, a BBC, com o seu documentário infelizmente editado, não mostra um Donald Trump muito diferente daquele que instigou "patriotas" a assaltar o Capitólio. Daí que tudo me pareça tão nonsense: porquê, para quê, sabendo que aos mentirosos histerico-narcisistas compulsivos basta meia gota de água para fazer transbordar um copo vazio? Vinte e seis artigos da BBC a bater na BBC não redimem a BBC; não quando a "vítima" é um transgressor adorado por meio mundo, vingador e vingativo, aglutinador de todas as nossas amoralidades. É perverso. A própria tentativa de correcção alimenta o monstro, é da mais básica psicologia. Ou psicopatia…
quarta-feira, 12 de novembro de 2025
terça-feira, 11 de novembro de 2025
O Feiticeiro Oz
Não
deixa de ser extraordinário, embora Oz Pearlman fosse incapaz de adivinhar,
numa primeira vez, uma perfeita estranha, que a minha professora de matemática
de décimo ano se chamava Balbina Cavalheiro Gomes, usava um ponteiro de aço para
apontar teoremas com rigor militar, tratava-nos pelo número da caderneta, nunca
pelo nome, excepto o Nuno, que se sentava atrás de mim, enrolava nos dedos o
meu cabelo de seda e era o único capaz de tirar do sério a professora
Balbina. Ou que adoro as maçãs vermelhas que me trouxeste, de um vermelho liso,
líquido, tão pecaminoso que nem as lagartas do pomar se atrevem a violar.
É aceitável ter um deputado a atirar beijos a outra (ou outro, era para Rui Tavares, não era?) deputada, a mandá-la calar e, a outra, para a sua terra? Não devemos chamar desprezíveis aos desprezíveis? Aturar aquilo é ser “democrata”?
É verdade, já tivemos os corninhos e a sessão de manicure, mas, não tarda nada,
temos os democratas do Ventura a cuspir para o mui nobre chão da Assembleia
da República, e a aliviarem-se contra as paredes. Parece absurdo, mas o absurdo é
superlativo.
segunda-feira, 10 de novembro de 2025
Frankenstein
Depois do livro – devida vénia a Mary Shelley –, continuo a preferir o de Francis Ford Coppola…
domingo, 9 de novembro de 2025
"O piano não se toca com as mãos, mas com o corpo todo. E o corpo tem uma influência brutal na forma como fazemos vibrar a corda. É preciso saber como funciona o corpo. Como um desportista. Como um bailarino."
sexta-feira, 7 de novembro de 2025
quarta-feira, 5 de novembro de 2025
Teremos sempre Nova Iorque
Não sei quem é Zohran Mamdani antes de o novo mayor de Nova Iorque, mas, se desafia Donald Trump, parece-me bem. O mundo pula e avança pelo sonho dos homens, e o que é o sonho de uma criatura sem uma pequena dose de loucura. Mamdani agora, Gavin Newsom em 2028, admitindo que Trump resiste até 2028, tudo o que possa revolver as entranhas do rei. Irritar, contrariar, recusar. Não temos nada disto. A nossa rebeldia agoniza entre votos de protesto, explicam-me, num partido de arruaceiros incontinentes (não chamem extrema-direita àquilo), e o regresso do sebastião Pedro Passos Coelho. Até lá, aceitamos sem sobressalto um governo de gente medíocre, liderado por um primeiro-ministro incapaz de despir aquele sorriso cínico desde que viu validada nas urnas a sua habilidade tão portuguesa. Portugal ficou mais Portugal. O advogado de José Sócrates virou (virou?) as costas ao “julgamento a brincar”, esquecendo que o país é a brincar, e só por isso ele e o seu ex-cliente podem exibir com gozo, impunes, a sua imensa desfaçatez.
Viva
Zohran Mamdani.
sexta-feira, 31 de outubro de 2025
quinta-feira, 30 de outubro de 2025
quarta-feira, 29 de outubro de 2025
– ...um blog diferente para conteúdos diferentes: opinião, crónicas, diário, …
Não era? E agora, como confessar que não sei arrumar-me nessa esterilidade cirúrgica; que seccionar ordenadamente qualquer parte de mim resultaria numa amputação capaz de derrubar o meu edifício inteiro, como Clarice sobre os defeitos?
domingo, 26 de outubro de 2025
É
tarde, e conduzo eu. À esquerda, há muitos anos a primeira vez, mas não
esqueci. À esquerda, onde o corpo hesita antes da memória.
Ao meu lado dormes um sono tranquilo. Um corpo imóvel é uma forma de paz. Um álibi. O meu corpo vibra. Está desperto, alerta. Um desvio ligeiro antes da curva perfeita; do javali cor da noite, uma linha a tracejado na contramão do abismo recto. O ruído baixo do motor. Gosto. O vulto negro da montanha mesmo antes da dissolução sob o veio de luz macilenta.
A estrada é um animal dócil se a olharmos
de frente.
quinta-feira, 23 de outubro de 2025
sábado, 11 de outubro de 2025
Amante
devota (aprendiz, desastrada) da língua portuguesa, e, nela, da palavra escrita, há momentos em que a
própria palavra me é ruído. Admito.
Abri
um magnífico tinto do meu Douro. Celebrar. Vou acreditar que há realmente um plano de paz em
marcha, capaz de estancar a orgia de sangue na faixa de Gaza e
de normalizar a discussão sobre o "direito à defesa" de Israel. O que
pode haver de condenável? E celebro também o Nobel de María Corina Machado. Ouço detractá-la, que é amiga de Abascal e
admiradora de Trump; mas, entretanto, resiste, recusa, enfrenta o déspota Nicolás Maduro. Sempre me pareceu absurdo considerar a possibilidade de
distinguir como agente da paz um homem como Donald Trump, capaz de incendiar o
próprio país em nome da glória pessoal, messiânica, a política como uma horda
de fanáticos subjugados a um deus menor. Uma seita. Mas, que sei eu? Movo-me
entre muros de papel, sob uma lei esgotada.
sexta-feira, 12 de setembro de 2025
The Giant´s Causeway
A mim também me parece um enorme favo de mel, mais do que uma calçada de gigantes.
A Natureza é artesã exímia – precisa, paciente, geométrica. Implacável. Não há lenda que lhe iguale o génio. Inventamos histórias para suportar a simplicidade da perfeição.
quinta-feira, 11 de setembro de 2025
Seja tradição, misoginia, influência dos vikings, do alemão ou do
latim, a verdade é que me seduz que, de um navio, em inglês, se diga she. And she will, garantia o Mr. Andrews
de James Cameron sobre o iminente naufrágio do Titanic. Por
coincidência, (re)vi o filme a poucos dias de viajar para a Irlanda; intencionalmente,
voltei a vê-lo no regresso. Gosto de histórias bem contadas, e o Titanic
de Cameron é, essencialmente, uma história bem contada. Triste no que tem de
real e trágico, medonhamente romântica, e muitíssimo bem contada. O museu que
Belfast dedica ao magnífico e efémero navio é interessante, não sei se absolutamente
imperdível, mas impressiona ler e ouvir testemunhos de sobreviventes e,
sobretudo, perceber como pequenos erros e pequenas contrariedades concorreram
para o desastre. Estava longe de imaginar que, daí a poucos dias, choraríamos os
mortos do icónico e nosso elevador da Glória, mas lembro-me de pensar em desgraça no
regresso, durante a aterragem desajeitada no aeroporto de Lisboa, a cidade tão
perto que parece possível tocar.
A
estátua de James Joyce é em Dublin, não em Belfast, Irlandas diferentes, eu sei, mas vou deixar aqui. Também
por coincidência, a primeira “notícia” que me apareceu nada mais desligar o
modo de avião foi a crónica de Miguel Esteves Cardoso sobre como ler Ulisses:
ando a fazê-lo há um ano, há momentos em que me aborreço de morte e outros em
que pasmo de admiração – como é que se consegue aquilo?
Há
tanta coisa extraordinária no que já se conhece sobre o acidente e sobre a
empresa responsável pela manutenção do malfadado elevador da Glória – extraordinária
e, ao mesmo tempo, tão desgraçadamente típica daquele oportunismo manhoso que
nos (des)governa –, que mais extraordinário ainda é não ter havido mais e maiores
tragédias. Ocorreu agora, com Carlos Moedas na presidência e assustado como uma
lebre (pensar que houve um tempo em que o vi como alguém sério e capaz…), como
poderia ter ocorrido com outro qualquer, talvez até com outra empresa: um
descarrilamento em 2018, aparentemente, com “grandes falhas na manutenção dos
rodados”, foi tratado com a complacência do costume, e que só se percebe pela
demissão cívica, social, política, que aceitamos com a resignação dos derrotados.
Tudo parece permanentemente improvisado; deve ser por isso que tanto rezam
missas as ilustres trindades da pátria.
Para
fazer diferente, Carlos Moedas não precisava de berrar contra Medina, uma
paródia que há-de persegui-lo até em sonhos: podia ter começado por mandar analisar à
lupa em que condições guarda Lisboa os seus barris de pólvora, por mais belos,
apetecíveis e rentáveis.
A
percepção – tão cara ao primeiro-ministro quando convém – é a de um país espoliado
e exausto, que sobrevive apesar dos saqueadores do Estado e aos ombros de gente
animada de boa vontade e solidariedade, como os médicos que interromperam férias
para resolver e ajudar. Ainda se aprendêssemos, de facto, alguma coisa.
terça-feira, 12 de agosto de 2025
sexta-feira, 8 de agosto de 2025
O
cheiro limpo dos lençóis apenas uns segundos antes do despertador. E nesses
segundos, o silêncio denso e seco que prolonga o vazio do meu sono de morte:
nem uma memória, um sobressalto, o mais breve bulir de um sonho. O que diria
Freud do meu sono uterino, que me devolve inteira ao princípio de mim?
Um vazio branco e limpo como os lençóis onde me abrigo. Nem sequer o clamor estrídulo das gaivotas. Parece-me haver cada vez mais, e suporto-as cada vez menos. Poderia facilmente abater aquelas duas, aninhadas no telhado defronte. Às vezes tenho maus pensamentos pela manhã. Para me redimir, regresso à estrada de ventre ondulado, até ao cimo da serra, para ver o meu mar longe de casa. Conto-te, com vagar e rigor, tanto e quase nada, ao ouvido do vento leve e fresco dos últimos dias. Solto-te sobre o vazio nascente e deixo-te partir.
quinta-feira, 7 de agosto de 2025
"O direito é o justo e o verdadeiro.
O que é próprio do direito é continuar a ser
eternamente belo e puro.
O
facto, mesmo o mais necessário, na aparência, mesmo o mais bem aceite pelos
contemporâneos, só existe como facto, e se houver nele só uma parte de direito,
ou absolutamente nenhuma, está destinado infalivelmente a tornar-se, com a
passagem do tempo, disforme, imundo, talvez mesmo monstruoso. Se quisermos comprovar
de uma só vez a que ponto de fealdade o facto pode chegar, visto à distância
dos séculos, olhemos para Maquiavel. Maquiavel não é um génio malvado, nem um
demónio, nem um escritor cobarde e miserável; é apenas o facto. E não é só o
facto italiano, é o facto europeu, o facto do século XVI. Parece hediondo, e
é-o, à luz da ideia moral do século XIX.
Esta luta do direito e do facto existe
desde a origem das sociedades. Terminar o duelo, amalgamar a ideia pura com a
realidade humana, introduzir pacificamente o direito no facto e o facto no
direito tal é o trabalho dos sábios.
(…)
Mas um é trabalho dos sábios e o outro é
o trabalho dos habilidosos.
A revolução de 1830 parou muito depressa.
Assim que uma revolução fica encalhada, os
habilidosos dividem os despojos.
Os habilidosos, no nosso século, atribuíram
a si mesmos a qualificação de homens de Estado; de tal modo, que a expressão “homem
de Estado" acabou por se tornar um tanto uma expressão de calão. Que não nos
esqueçamos realmente disto: onde só há habilidade, também há necessariamente
pequenez. Dizer habilidosos equivale a dizer medíocres.
Do mesmo modo, dizer homens de Estado
equivale, algumas vezes, a dizer traidores.
Se acreditarmos então nos habilidosos, as
revoluções como a Revolução de Julho são artérias cortadas e precisam de ser logo
laqueadas. O direito, proclamado em excesso, destabiliza. Por isso, quando já
está consolidado, há que consolidar o Estado. Assegurada a liberdade, há que pensar
no poder."
Os Miseráveis, Vítor Hugo
terça-feira, 29 de julho de 2025
Li a entrevista de Pedro Paixão e corri a comprar o seu "Desvio da Memória”. Não compro muitas coisas por impulso, mas compro muitas vezes livros por impulso. E gosto do autor.
Nas últimas semanas tenho lido (e relido) muitos livros sobre os horrores do Holocausto. Consome-me perceber a dimensão do ódio de que fomos capazes – e como se ultrapassa tão facilmente essa fronteira. O horror chega muitas vezes de olhos limpos. Kathrine Kressmann Taylor escreveu “Desconhecido Nesta Morada” assediada pela perplexidade que lhe causava perceber como alguns dos seus amigos “alemães, cultos, intelectuais, generosos", de regresso à Alemanha depois de terem vivido nos EUA, rapidamente se tornavam "nazis convictos": "Recusavam-se a ouvir a mínima crítica a Hitler. Durante uma visita à Califórnia, encontraram na rua um velho amigo deles, que em tempo estimavam, com quem tinham uma relação estreita, e que era judeu. Não lhe dirigiram a palavra. Voltaram-lhe as costas quando ele estendeu os braços para os abraçar. 'Como isto é possível?', perguntei a mim própria.”. É um livro extraordinário. Quase um livro. Curto. Uma “ficção epistolar”. Lê-se como um catecismo. O de Pedro Paixão é como uma bíblia, difícil, denso, labiríntico. Vou saltando páginas, volto atrás, recomeço. O calor ígneo que larva lá fora concede-me desculpas para não sair e declinar convites.
Livros e viagens: são a minha ruína. Mais cem anos viveria, e ainda assim sem tempo de me saciar. E para cada viagem devo preparar os livros que quero levar. “Desvio da Memória” será impossível.
Também gosto de preparar as
viagens de carro com um mapa de papel, que abro no chão da sala para poder pensar melhores caminhos. Isso é tão século passado, mamã. Não é? Eu sei, mas gosto
assim. É-me impossível traçar um percurso sem essa visão global, quase física,
do espaço. Depois usarei os mapas virtuais; em tempo real. Agora não. Conforta-me o toque; a ausência de um écran. Imagino
que o Armageddon há-de chegar por uma ordem primária, um desses apagões
informáticos, dramático, igualmente implacável, quarenta dias e quarenta
noites de silêncio absoluto para remissão dos nossos pecados, mas sem a ajuda de
Deus. Até ele já desistiu de nós.
"Não há fome em Gaza"
Forjar
um mecanismo sofisticado de racionalização imparcial para moldar uma
narrativa pretensamente informada, sob o véu enviesado da isenção, não
constitui, também e sobretudo, uma forma dissimulada de propaganda?
domingo, 27 de julho de 2025
Ballet Rose
Não
há nenhum juízo capaz de me conciliar com a mundividência de Donald
Trump – e seus apóstolos, como aquela matilha de indigentes que compõem a
bancada do nosso, salvo seja, André Ventura. Acho-o grotesco, manhoso, tinhoso,
ordinariamente ignorante e imbecil, predador e até patético; representa tudo o
que desprezo, nomeadamente, num homem. Donald Trump, não só é o
caricaturável por excelência, como merece todas as piadas que se possam fazer à
sua custa; mas ridicularizar-lhe a genitália (esse enfadonhamente previsível
arremesso de escárnio) não servirá grandes propósitos, nem mesmo os do humor.
Desprezar
Donald Trump não me impede de admirar – pelo espanto, e apenas pelo espanto – a sua
autoridade; a sua implacável e aparentemente inabalável eficácia política. A transgressão sistemática
que cultiva e promove desbragadamente, eleva-o, fortalece-o. É perturbador. Espero
viver o número de anos suficientes para vir a conhecer o olhar da História
sobre o homem que se tornou democraticamente imune a todas as regras, a todas
as leis que regem o poder democrático e pelas quais, muitos antes dele (e
muitos depois dele) foram dilacerados. O caso Epstein é, talvez, o único que
pode realmente fazer tremer essa autoridade. Donald Trump transformou a
política numa performance onde a verdade se prostitui ao drama da
espectacularidade e Epstein ameaça tornar-se a Némesis perfeita.
Os escândalos sexuais envolvendo a elite política e outras figuras públicas de poder não são novos e tendem a ser esmagados por esse mesmo poder, indiferente às vítimas que vai abatendo pelo caminho. O sexo é o último reduto onde todas as máscaras caem, esse tentador e obscuro bastidor do poder – do político, obviamente –, onde, desde todos os tempos, se desenrola uma extravagante coreografia de favores e corrupção, que não reconhece fronteiras ou hierarquias, onde a hipocrisia se despoja da sua eloquência e se expõe, frágil e movediça, à luz sólida e crua do escrutínio. Não é a economia, stupid, que derruba os grandes impérios. O sexo é a linguagem universal da corrupção, moeda de troca de babel, o denominador comum que nivela escravos e imperadores – ninguém é imune. O que talvez seja diferente aqui é o facto de haver – ou parecer haver – uma base considerável de apoiantes de Trump ferozmente contra a ocultação dos tais ficheiros da vergonha e cada vez mais consciente das suas desesperadas manobras de distração. Simultaneamente, não deixa de ser irónico, o mentiroso rudimentar, que nunca se inibiu de exibir a sua misoginia primária, assombrado pela verdade mais antiga do mundo.
quinta-feira, 24 de julho de 2025
A propósito de "O Impostor", de Javier Cercas, que acabei de ler. A fabulosa – e infame – história de Enric Marco, o falso sobrevivente de um campo de concentração nazi, que durante trinta anos viveu e fez viver a mais formidável farsa do século. Várias vezes, Javier Cercas escreve que não (?) pretendia perdoar ou reabilitar Enric Marco pela sua odiosa audácia, mas, como acontece quase sempre com os bons livros e os bons escritores, os seus leitores acabam enamorados dos patifes. Ou talvez seja só eu. Enric Marco foi um admirável patife. Tão admirável que não é nada absurdo pensar que o seu último golpe de génio tenha sido esse, precisamente, o de deixar Cercas dissecar reverentemente, crua mas reverentemente, a sua assombrosa mentira. No fim, já ninguém recorda a integridade de Benito Bermejo, o rigoroso historiador que desmascarou Marco: quem quer saber do sabor morno da verdade, depois de se perder pela labiríntica e espantosa teia de ilusões que Marco cerziu pacientemente, com a maestria dos melhores contadores de histórias, fundindo a mediocridade de uma existência comum com o fulgor trágico das lendas que sobrevivem ao tempo? A questão não é saber quem nunca quis (re)inventar-se, mas quantos ousam, até onde e quanto desse atrevimento é verdadeiramente genial.
quarta-feira, 23 de julho de 2025
domingo, 13 de julho de 2025
sábado, 12 de julho de 2025
Aceitar a desilusão é aprender a dançar com as sombras suspensas na luz. Reconhecer que nem tudo permanece para lá da memória, que alguns encontros existem para durar o tempo exacto, e que deixar partir é mais uma forma de amor do que de ruptura. Como o mar que recua, deixando gravados na areia vestígios do que foi. A desilusão não é o oposto da sabedoria, mas a sua matriz primordial. Só a condescendência é insuportável. Só a condescendência me é insuportável. A vida é isto também, uma despedida contínua. Guardo o silêncio que fica, um toque de veludo, e que nunca temo porque me sustém.
domingo, 6 de julho de 2025
quarta-feira, 2 de julho de 2025
Detenho-me
reverentemente na violência silenciosa do amor. Na sua devastação subtil. Profana.
O olhar que se demora sobre a pele, o fogo lento que consome os sentidos ainda
antes do primeiro toque; punhal envolto em seda. A crueldade fermentada dos
gestos mais ternos. A renúncia, a espera, o sangue latejando sob a linha do
pescoço, o corte limpo de uma ausência que se instala como febre. A solenidade
da entrega como catarse – arqueólogos da nossa própria ruína, sobre o
azul-cobalto da saudade em decomposição.
Sobre
a nacionalidade e os nossos valores: parece-me tudo muito bem. Se vamos
integrar pelo exemplo, podemos começar pelo do excelso secretário regional do
Turismo, Ambiente e Cultura da Madeira, ou pelo general-comentador Agostinho
Costa – se se pode chamar àquilo comentar: pelo que vi, é uma espécie de
monólogo, sofrível e febril (há outros canais de televisão onde a mesma pessoa
possa estar quase ininterruptamente durante treze minutos a pregar aos peixes?); e, embora eu
evite ao máximo usar do lamento em torno da misoginia – não porque não o considere
adequado tantas vezes, mas porque prefiro a estocada com recurso a outras armas –, não sei se
o major-general destrataria de forma tão estrídula a Diana Soller se a Diana
Soller não fosse uma mulher. Mas é. E muito
contida, ao contrário do seu detrator; por mim, tinha mandado o senhor à merda,
para usar uma utilíssima palavra do dicionário, como ensinou o outro senhor, o
da cultura.
De resto, estou para coisas simples. O calor deixa-me enjoada e impaciente, incapaz de seguir o fio dos acontecimentos; para além do julgamento do ano. O da Marques, não o do Marquês – este, se nenhuma das partes falecer entretanto, deve resolver-se pelo pagamento de uma bela indemnização ao arguido, que poderá, finalmente, retribuir ao generoso amigo a preciosa ajuda que lhe vem garantindo há anos, sem esquecer os cinco milhões de euros da herança da mãe. É o da Joana Marques que me intriga quase perversamente. Ando perplexa com a leitura que as advogadas dos queixosos têm feito sobre o assunto. Do bullying aos "limites do humor" ou da "liberdade de expressão", parece-me tudo estupidamente absurdo; quase amador. A coisa mais inteligente e sóbria que li sobre isto escreveu-a Francisco Mendes da Silva no PÚBLICO: “A acusação de que Joana Marques é uma bully, lançada amiúde, não faz qualquer sentido. O Extremamente Desagradável, a sua rubrica bandeira na Rádio Renascença, zomba dos fanfarrões e dos trapaceiros, da babugem presunçosa das “celebridades” e das vigarices dos “criadores de conteúdos”. É um programa sobre a volúpia de quem se apresenta ao mundo na mó de cima, ou numa posição de superioridade moral. O principal tema do humor de Joana Marques é o nosso narcisismo. É a falta de noção, a imodéstia desregrada, a propensão para o ridículo de que ninguém está imune. (…) E o seu talento mais visível, acrescento eu, é o de conseguir chamar a atenção do público, com o menor grau possível de intervenção humana, para o ângulo cómico de todas as situações.(…) Daí que um dos aspectos mais deliciosamente cómicos deste caso, dada a sua coerência com o processo criativo de Joana Marques, é a ironia de os Anjos estarem a ser gozados por Portugal inteiro, num cenário que a envolve, mas sem que ela tenha de alguma forma manipulado a realidade.”
Além de que o vídeo da discórdia nem sequer pertence ao alinhamento do “Extremamente Desagradável”, a versão integral é igual ou pior, e é possível que meio Portugal ou mais, onde me incluo, nem soubesse da sua existência antes disto. Os Anjos querem que o tribunal os absolva do ridículo que os próprios cavaram – não a Joana Marques, por muito que não se goste do humor que a Joana Marques faz.
É inacreditável o tempo que perdemos com isto. Mea culpa também. E não sou capaz de dizer que os Rosado não ganham. Os tempos andam assim para o estrábico.